Funduras Solange Pessoa

Apresentação

O mundo – este arrepio concêtrico: olho fixo por onde toda a matéria contempla o espaço descentrado.  

Herberto Helder 

 

Em Funduras, Solange Pessoa apresenta uma qualidade inesperada dos minerais: a leveza. A artista mobiliza algo que está distante do nosso imaginário, a linguagem das pedras, e traz à superfície forças geológicas das profundezas da terra. Dessa superfície e leveza se sobressaem movimentos cromáticos singulares. É por esse percurso que pode parecer sinestésico, que outros territórios são inventados. Eles vão do carvão e ao sumo do jenipapo ao verde-pátina, pétreo e brônzeo, passando pelas cores formadas a partir de novas afinidades da matéria, como a fusão entre a prata e o cristal. A esse eixo cromático de relações originais somam-se os elos laranjas das composições de suas pinturas.    

   

Eis uma lição de geologia de Solange Pessoa: tudo vem da terra. Compondo ambientes insólitos, Pessoa desvela tudo aquilo que estava sob o segredo da terra, emergindo de modo onírico por meio de afinidades que se criam. Com as instalações, pinturas, desenhos, cerâmicas, esculturas e vídeo, Solange Pessoa elabora paisagens de um mundo telúrico e, com isso, convida elementos, antes distantes da vista humana, para habitar o tempo dos vivos e povoá-lo com outras plasticidades. A artista fabrica um sonho da terra. Essa é a matéria concreta do onirismo produzido por ela ao longo dos anos. Suas obras demoram décadas para se formarem e na dimensão mais imediata atraem visitantes que entram em contato com cada parte da exposição.    

   

As duas primeiras partes da exposição preparam o passeio pelos jardins minerais de Solange Pessoa, pois é, a partir delas que seguimos a contornar a terra. A primeira parte se situa na entrada do galpão da galeria: são cerâmicas pretas distribuídas na parede e no chão. No espaço contíguo, à esquerda, estão os desenhos com jenipapo e carvão, Frugívoros. As formas elementares desenhadas retomam um imaginário mais voltado sobretudo para o mundo botânico que podem muito bem se situar a partir da memória do jenipapo com carvão como fusões telúricas. São formas híbridas e frutíferas que seduzem por uma noite criada pela artista.     

   

 Solange Pessoa tem por base os elementos mais essenciais. Ela os agencia em termos de matéria e memória. É pelos minérios que a terra, pelo fogo, pelo ar e pela água que nos surpreendemos com formações que escapam a qualquer manifestação puramente geológica. um espírito das pedras que ganham sopro e vontade plástica, afirmando-se no espaço como entes com linguagem. E antes de nomear esse gesto de “animista”, é preciso situá-lo no contexto mais amplo da obra de Solange Pessoa, pois trata-se de um estado de invenção de um outro lugar. Não sendo nem puramente imaginário, nem contingentemente concreto, a artista costura o geológico com o inconsciente da espécie humana. Com a atenção voltada aos mais diversos fenômenos humanos e geológicos, a ação das pedras proposta em Funduras recebem das mãos da artista a passagem de um tempo não-humano ao humano. E com isso muitos dos títulos propostos pela artista compõem elos metamórficos entre matéria e memória.    

   

Verdilitas são peças nas quais bronze e pedra se fundem. Trata-se da pedra fuchsita que, além de ser esverdeada, produz junto com o bronze uma pátina que as une. Se a artista tem o hábito de unir em peças matérias em contraste como bronze e plumagem, desta vez a semelhança destas assemblages mostram corpos híbridos em termos de substância, protegidos pela pigmentação que os une. Ocupando a parede e o chão, esses relevos marcam parcialmente que aquilo que chamamos de acidente nada mais é que um encontro prolongado numa vasta escala de tempo. Verdilitas são peças que mantêm esse encontro não-humano em ação.    

   

Outro encontro incomum é a instalação Deliria Deveras. Nove peças de prata com dimensões variáveis são inseridas, distribuídas ao longo de vinte toneladas de cristais. A prata está junta ao cristal. A instalação reúne brilho e reflexo. A luz tem uma participação fundamental. Ela é um elemento físico correspondente da instalação, participando com muita veemência no espaço, com variações ao longo do dia. Uma vez mais, o irregular e o regular se encontram. Essas nove peças são entidades que compartilham do mesmo corpo e são distribuídas ao longo da miríade de cristais. Ao invés de devolverem a imagem de quem as observam, elas convidam a ser olhadas: umamiraçãopermanente, miríades, capaz de levar ao delírio, a sair de siA nossa fascinação pelo mundo mineral se conecta com o inconsciente coletivo que aciona uma memória da espécie, sendo ainda a nossa longa viagem sobre a terra. Com isso, a artista transmite uma envergadura vital dos minerais que vão se combinando com imagens, como é o caso da série Solarengas 2 que compreende oito pinturas, com 3 x 4 metros cada.     

   

Solarengas 2 é um desdobramento de uma série da artista, Solarengas 1, expostas em 2023 na Mendeswood DM em Nova York. Elas fazem parte de pinturas terrosas feitas a partir de pesquisas arqueológicas pessoais da artista por igrejas da Bolívia e do Peru. Esses motivos também circulam por casas populares, ameríndias, caboclas e quilombolas no interior do Brasil. Além disso, essas forças se combinam com um imaginário etrusco que, em outro contexto, poderia ser chamado de afrescos tropicais. nessas obras uma memória da poeira das estradas de terra e das paisagens que intercalam plantações, frutos, lavouras. Em nenhum momento a artista sai do que poderíamos chamar de idades da terra.    

   

Funduras vem desse gesto arqueológico que Solange Pessoa apresenta ao público. Suas escavações se referem ainda ao imaginário comum, que compartilhamos com diversos povos, criando, inclusive, uma dimensão metafísica ou supra-sensorial sem risco de cair na ilusão de nenhum misticismo. São investigações que possuem, inclusive, referências que não são estrangeiras ao cinema, pois, parodiando Glauber Rocha, autor de A idade da terra e de Terra em transe, pode-se observar que a artista está a conduzir um transe não-humano das substâncias. Ao investigar o mundo mineral, Solange Pessoa elabora e expõe relações tanto ínfimas quanto infinitas no âmbito das formas telúricas e sobretudo na capacidade dela de fazer com que elas, em obras, sejam assimiladas pela nossa organização de sentidos.    

   

É esse silêncio milenar de pedras, bronzes, cristais e prata que passam doravante a integrar a nossa língua, nossos gestos e nossa imaginação até se incrustarem no nosso espírito. Esse cinema mineral pode ser experienciado no vídeo Delongas, onde, sob um fundo negro, se presencia os movimentos mais elementares da matéria. Por mais que o galpão da Mendeswood DM nos um chão, a artista nos orienta pela noite telúrica da terra e nos expõe à clareza da linguagem mineral, mostrando-nos que são muitas as idades da terra.    

    

 

Eduardo Jorge de Oliveira 

Obras
Vistas da exposição