Visions and Materialities Mira Schor

Apresentação

“Para eles, a história era apenas uma alusão. As coisas eram como palimpsestos, o céu a tangente no círculo de toda a experiência. Estavam convencidos de que tudo apontava para algo transcendente, de que o que é aparente não passa de uma fina camada do que permanece oculto, e muitas vezes preferiam firmar-se à beira do profundo, mesmo que isso implicasse abandonar o terreno sólido do superficial.”

– Abraham Joshua Heschel, “A World of Palimpsests,” The Earth Is the Lord's: The Inner World of the Jew in Eastern Europe[Farrar, Straus and Giroux], 1949.1

 

Lá estava eu, apressada para concluir meu trabalho, conforme 2024 chegava ao fim. Naquela manhã de verão em Salvador, debruçada sobre a mesa de um Airbnb, me vi dividida entre as últimas tarefas do ano e uma pilha de documentos por ler sobre a prática crítica e artística de Mira Schor. Fiz um rápido desvio – ou melhor, uma procrastinação produtiva – para pegar minha cópia parcialmente lida do livro The Sabbath World: Glimpses of a Different Order of Time, de Judith Shulevitz², que me paralisou. O trecho em que me deparei falava do tempo sagrado como arquitetura – não aquela feita de pedra e argamassa, mas de ritual e atenção. O Sabbath, sugere Shulevitz, é menos uma pausa e mais uma estrutura, uma forma de ordenar a experiência coletiva frente ao fluxo incessante do tempo secular. Eis minha deixa! Essa noção de tempo como algo construído, em vez de simplesmente habitado, ressoa na trajetória artística singular de Mira Schor – seus vestidos, máscaras e palavras se repetindo ao longo das décadas, cada retorno acrescentando novos cômodos em seu edifício de significados em constante expansão. Sua atenção meticulosa à temporalidade se revela até mesmo em sua prática de documentação – muitos de seus trabalhos são marcados com datas precisas, não apenas o ano, mas frequentemente o dia exato, transformando-se em âncoras temporais de sua cronologia artística. Cada trabalho datado marca um momento nessa arquitetura do tempo, enquanto suas pinturas a óleo seguem um sistema diferente, em que o ano geralmente aparece nos chassis.

 

O cenário para esta exposição parece predestinado: uma residência projetada por Adrien Blomme no início do século 20, situada no distrito de Sablon, em Bruxelas, onde a intimidade doméstica permeia os cômodos renovados. A arquitetura em estilo townhouse da galeria, com sua sequência de salas conectadas por arcos, cria pausas naturais entre as obras – cada espaço funcionando como uma zona temporal distinta, onde os trabalhos de Schor podem se instalar em diálogo.

 

A inspiração para essa abordagem poderia ter vindo de sua casa de infância, onde seus pais, os artistas judeus poloneses Ilya e Resia Schor, se estabeleceram após fugirem da Europa, levando consigo uma devoção compartilhada pelo artesanato. Durante nossa recente conversa por Zoom – um ritual da era pandêmica que, de alguma forma, persiste –, Mira evocou o apartamento da família em Nova York com uma precisão cinematográfica: cada superfície testemunhando o trabalho artístico, as ferramentas de gravura de seu pai organizadas com um cuidado quase devocional. Após sua morte, essas mesmas ferramentas passaram para as mãos de Resia, criando um palimpsesto da prática familiar que ressoa no trabalho de Mira até hoje. Seus trabalhos recompensam o olhar curioso; com versos que muitas vezes são mais intrigantes do que as faces, abrigando câmaras secretas que evocam as mezuzás de seu pai.³

 

Quando Ilya morreu, em 1961, Resia – com 50 anos e duas filhas para sustentar – realizou o que pode ser descrito como um ato de transmutação artística. Sentada à mesa de trabalho do marido, com apenas um conhecimento básico sobre o ofício dele, começou a finalizar alguns fragmentos das peças de prata que ele deixara, mas rapidamente desenvolveu seu próprio estilo abstrato, radicalmente diferente. Mira, então com 12 anos, presenciou essa metamorfose, absorvendo lições de resiliência que mais tarde influenciariam suas próprias transformações artísticas. Hoje, ela ainda mora no mesmo apartamento, onde as ferramentas do pai a conectam ao aprendizado dele em Varsóvia e à Academia de Belas Artes, o lugar onde a história de seus pais começou.

 

No início dos anos 1970, no California Institute of Arts (CalArts), onde Miriam Schapiro e Judy Chicago estavam ocupadas subvertendo as normas patriarcais do mundo da arte, Mira Schor iniciou sua própria revolução silenciosa, com representações diarísticas de si mesma na exótica paisagem californiana. Seus vestidos de papel, criados em meados da década de 1970, incorporavam a consciência feminista complexa da época, brincando deliberadamente com as contradições inerentes ao conceito de feminilidade. Como Schor reflete, por um lado, eles eram itens excepcionalmente frágeis; por outro, a presença dessas figuras/objetos de arte enigmáticos e delicados, pendurados no espaço do próprio espectador, muitas vezes era vista como um ato agressivo – sua fragilidade desafiava as sensibilidades da época, especialmente dos homens. “Esse era um pouco meu objetivo, mas também foi algo que alguns homens compartilharam comigo,” ela comenta. Essas peças – que ela concebeu como “vestidos” e formas ascendentes em V – oscilam entre vulnerabilidade e voo, preocupações terrenas e ascensão espiritual. Mais tarde, como a única professora mulher de artes visuais no Nova Scotia College of Art and Design, ela posicionou essas peças “de igual para igual” com os espectadores, transformando os espaços expositivos em campos carregados de política de gênero. Schor aborda a feminilidade com a profundidade analítica de uma antropóloga: “Eu não faço isso por feminilidade,” observa ela, “mas porque acho a feminilidade tão intrigante e evasiva quanto qualquer outra noção.”

 

Em meados da década de 1980, Schor trocou o papel pela pintura como suporte, embora o espectro da transparência ainda pairasse sobre esse novo meio. A linguagem, sempre sua fiel companheira, se integrava a tudo – desde fragmentos de sonhos rabiscados em camadas de máscaras até palavras que se transformam em puro ritmo pictórico. “As mulheres estavam cheias de linguagem”, declara em seu livro Wet⁴, referindo-se não à ideia estereotipada e pejorativa de “bate-papo”, mas a um vasto cosmos interior de “ideias, ambições e filosofia”. Em Breast (1993), exposta aqui, vemos como ela une corpo e texto, utilizando sinais de pontuação como recurso visual e linguístico. Essa abordagem atingiu seu auge em War Frieze (1991–1994), onde a linguagem flui entre partes do corpo associadas a gênero, como uma sintaxe corpórea. É uma espécie de judô artístico, usando a beleza para conduzir o espectador a uma consciência política.

 

Em 2015, um encontro com as figuras N’kisi – primeiro em Berlim, depois no Met – abriu um novo portal na prática de Schor. Essas figuras de poder da África Central, feitas de pregos e materiais sagrados, condensam múltiplas histórias em um único objeto. Sua presença nos museus ocidentais levanta questões contínuas sobre patrimônio cultural e restituição – um contexto particularmente relevante em Bruxelas, onde as discussões sobre o futuro das coleções coloniais permanecem urgentes. As Power Figures de Schor canalizam essa energia através de sua própria perspectiva feminista. Em Power Figure #1: Are You A Feminist Artist? (2015), uma forma com cabeça de crânio sangra e expõe seus seios, como se respondesse à pergunta do título com seu próprio corpo.

 

Distribuídos pela antiga residência em Bruxelas, os trabalhos de Schor encontram seus próprios ritmos, com sua escala íntima em harmonia natural com os espaços domésticos. Os detalhes arquitetônicos preservados do edifício – as proporções medidas de Blomme, as lareiras e as janelas originais – proporcionam um contexto inesperadamente consonante para uma arte que sempre transitou entre a declaração pública e a meditação privada.

 

O trabalho recente da artista continua a explorar a interseção entre trauma pessoal e político, mantendo sua precisão característica. Em Trauma 4 (2022), exposto aqui, ela lança um olhar irônico e, ao mesmo tempo, empático sobre a preocupação contemporânea com o trauma. A obra surgiu de sua observação de que os artistas jovens estão cada vez mais centrando suas práticas em feridas pessoais e políticas – uma tendência que, como ela observa, “beira o trivial”. Aqui, sua sucessão de pronomes – meu, seu, nosso – transforma a crítica potencial em algo mais sutil, criando um diálogo entre experiências individuais e coletivas.

 

Sentada com Shulevitz naquela manhã em Salvador, eu não tinha como saber que suas reflexões sobre o tempo sagrado iluminariam meu encontro com o trabalho de Schor. Em um mundo da arte sempre em busca da próxima revelação, aqui estava uma artista construindo algo completamente distinto – espaços de atenção onde múltiplas temporalidades coexistem. Esta estreia em Bruxelas fecha o círculo de sua prática, levando-a de volta à Europa de onde seus pais fugiram – um retorno sob outra perspectiva, onde a memória se transforma em método e o tempo se dobra, mas não se rompe.

 

– Fernanda Brenner

 

[1] Mira Schor compartilhou esta citação. O trecho aparece em um livro ilustrado com gravuras em madeira de seu pai, Ilya Schor.

 

[2] Judith Shulevitz, The Sabbath World: Glimpses of a Different Order of Time [Random House], 2010, explora a história e o significado do Sabbath na vida moderna, examinando seu papel tanto como prática religiosa quanto como estrutura temporal.

 

[3] A mezuzá é uma pequena caixa afixada no umbral das portas das casas judaicas, contendo um pedaço de pergaminho (klaf) com versículos específicos da Torá. Ela serve tanto como sinal de identidade judaica quanto como lembrete de fé e proteção divina.

 

[4] Mira Schor, Wet: On Painting, Feminism, and Art Culture [Duke University Press], 1997, é uma coletânea de ensaios que explora a interseção entre pintura, teoria feminista e crítica de arte contemporânea

  

Mira Schor é uma das principais pintoras feministas dos últimos cinquenta anos. Atuando na interseção entre linguagem, pintura e teoria feminista, Schor vem atribuindo urgência política ao formalismo, lembrando aos espectadores que o discurso escrito e a forma física estão profundamente conectados. Seu trabalho inclui períodos marcantes em que a narrativa de gênero e a representação do corpo foram o foco; em outros momentos, a ênfase recaiu sobre a representação da linguagem no desenho e na pintura.

 

Ela se inspira em diversas fontes visuais e referências históricas da arte para enriquecer suas pinturas. O tema central de seu trabalho recente é a experiência de viver em um momento de fascismo incipiente, colapso climático e aceleração do tempo, contraposto à atração por noções mais antigas de ofício e prazer visual. Sua iconografia e superfícies são, por vezes, transgressoras, mas frequentemente também delicadas, poéticas e íntimas, refletindo seu pensamento rico e multifacetado. Schor sobrepõe imagem e linguagem para reivindicar a presença da mulher nos sistemas de poder, controle e subversão. Em um momento de retrocesso conservador e apagamento das liberdades civis, seu legado e trabalho atual são mais relevantes do que nunca.

 

 

Mira Schor (n. 1950, Nova York, EUA) vive e trabalha em Nova York. 

 

O trabalho de Schor foi incluído em exposições no Centre Pompidou Metz, Metz (2024); no Musée de Rochechouart, Rochechouart (2023); Kunsthaus Graz, Graz (2020); no Kestner Gesellschaft, Hanover (2019); no Jewish Museum, Nova York (2010); no Hammer Museum, Los Angeles (1996); e no MoMA PS1, Nova York (1992).

 

Em 2023, a Pinault Collection – Bourse du Commerce, em Paris, organizou uma exposição individual de sua obra, com foco em trabalhos em papel da década de 1970. Ela recebeu prêmios de pintura do GuggenheimRockefeller FoundationMarie Walsh SharpePollock-Krasner Foundation e o prêmio de crítica de arte College Art Association’s Frank Jewett Mather Award. Em 2019, a artista recebeu o prêmio Women’s Caucus for Art Lifetime Achievement Award por sua atuação como pintora, historiadora de arte e crítica feminista. 

Obras
Vistas da exposição