É o caminho de casa que nos afasta Carla Zaccagnini & Runo Lagomarsino

Apresentação

Travessias, idas e vindas, partidas, retornos, e tudo o que acontece entre isso, estão entrelaçados nas vidas pessoais e respectivas obras de Carla Zaccagnini e Runo Lagomarsino. Essa exposição em si é uma espécie de caminho, onde as trajetórias se cruzam e depois se bifurcam, ainda que seja para se reencontrarem... É o caminho de casa que nos afasta... dizem... Uma exposição em dois espaços e no espaço entre eles; um diálogo marcado por encontros casuais, cigarros fumados, palavras peregrinas e travessias transatlânticas, que ao mesmo tempo tecem histórias de desarraigo, exílio, deriva, migração, perda e lembrança. 

 

Regn e Lluvia, duas obras com o mesmo título em línguas diferentes, feitas com quase uma década de diferença em países distintos, parecem fornecer provas de que os seus itinerários separados talvez estivessem destinados a se cruzar. Zaccagnini pergunta se “nos tornamos próximos depois do nosso encontro ou nos encontramos porque já éramos próximos?” E, de fato, as suas histórias pessoais e vidas paralelas parecem ter levado a esse encontro fatídico. Carla nasceu na Argentina, Runo na Suécia. Os pais de ambos, argentinos descendentes de imigrantes italianos, também migraram: os pais de Carla para o Brasil, os pais de Runo buscaram refúgio na Europa. A migração, o exílio e a deriva não existem nas respetivas obras como tema de discussão nem como leitmotiv, mas como algo herdado e indelevelmente gravado nas suas próprias vidas. 

 

Um diálogo entre os dois artistas é proposto nos dois locais que abrigam as duas galerias que representam respectivamente cada um dos artistas: Vermelho e Mendes Wood DM, separadas pela extensão da Avenida Angélica, em São Paulo. Uma performance peripatética vincula ambos os espaços, o único trabalho colaborativo entre os artistas na(s) exposição(ões), intitulada Justiça é a presença do amor no espaço público, frase emprestada do intelectual afro-americano Cornel West. Durante todo o período da exposição, duas pessoas sairão de ambas as galerias na direção uma à outra, cada uma portando uma camiseta. Um lê “justiça” na frente e “no espaço público” no verso, o outro lê “do amor” na frente e “é a presença” no verso. Em algum momento da caminhada, seus caminhos se cruzarão e a frase se unirá “justiça é a presença do amor no espaço público”, apenas para se separar momentos depois, quando os performers continuarem seus caminhos. 

 

Além de fornecer o fio condutor entre os dois espaços, a performance situa-se na intersecção entre o privado e o público, no centro desta exposição concebida por dois artistas com práticas separadas que compartilham as suas vidas pessoais e privadas. Suas partes constituintes – palavras, caminhadas, travessias, signos – mapeiam uma constelação de interesses que perpassam suas respectivas obras: a linguagem, a historiografia – das micro-histórias à macro-história – a geopolítica, a ideologia e a iconografia do ativismo. 

 

Esta obra, originalmente concebida para ser performada com placas sanduíche, pode ser inscrita no contexto do repertório gráfico da ação política direta, explorado tanto por Zaccagnini quanto por Lagomarsino em suas respectivas obras. Um trabalho anterior de Zaccagnini, Elements of Beauty (2012), revisitou as histórias entrelaçadas da arte e dos movimentos feministas, começando com uma análise poética do ataque da ativista sufragista Mary Richardson à Vênus de Rokeby em 1914. Untitled Echo (2021-2023), de Runo Lagomarsino, retoma a imagem da manifestação e do cartaz de protesto, desta vez à imagem da pintura de Giuseppe Pellizza da Volpedo, Il quarto stato (1899-1901), segurada por um manifestante durante uma recente manifestação no Chile. A pintura de Volpedo, que retrata uma cena em que os líderes da greve trabalhista avançam, presumivelmente para negociar os direitos dos trabalhadores, tornou-se um emblema dos movimentos operários. Lagomarsino captura o momento em que este é segurado por um manifestante e o justapõe a uma ampliação da pintura original; uma espécie de mise en abyme, na qual ambas as histórias, passadas e presentes, estão recursivamente inscritas uma na outra. Sous les pavés, la plage…uma frase anônima atribuída às revoltas lideradas pelos estudantes de Maio de 1968 imortalizou o tijolo como constitutivo da cultura material do ativismo. Enquanto Zaccagnini foca na imagem, no objeto e no seu rastro fantasmagórico, Lagomarsino concentra-se no gesto icônico, mas imaterial. Depositados no chão e embrulhados em papel traçado com grafite que contorna a superfície dos tijolos em seu interior, os Paraparalelepípedos (2023) de Zaccagnini parecem ter aterrissado ali, arremessados por manifestantes que atiravam tijolos, ou coquetéis Molotov, do espaço do outro lado da Avenida Angélica, tal como o manifestante de Lagomarsino em Histories that nothing are (2001-2003), cujo gesto inacabado fica para sempre preso numa sequência em looping. 

 

Traçados, gestos, impressões digitais, listas e inventários podem ser vistos por toda parte nesta exposição, à medida que Zaccagnini e Lagomarsino desvendam a ideia do índice e os múltiplos significados em suas obras. Os frottages de Zaccagnini não apenas envolvem os tijolos que permanecem dormentes em seu potencial para manifestar dissidência, mas também os contornos de dicionários bilíngues para imigrantes na Suécia Cada livro com todas as palavras (2023). Os frottages também se colocam como a presença espectral do badalo de sinos em De Bom Parto a Boa Morte (2017) e dos sons dos sinos mineiros, De sino a sina (2017), que são eles próprios rastros de ritmos ancestrais transmitidos de geração em geração pelos tocadores de sinos de Ouro Preto. Os Dactylograms (2023) de Lagomarsino são exatamente isso, impressões digitais; as do próprio artista, que ele estampa no verso de mapas escolares para formar diferentes formas e palavras, sugerindo, em conjunto com os mapas do outro lado, alianças, ordens mundiais, rotas, fronteiras. Estas estabelecem uma conversa com as World Words de Zaccagnini, um inventário, mais um índice, de palavras que aparecem repetidamente nos hinos nacionais (solo, terra, país, bravura, correntes, luta). Ambas as obras atuam como índices da construção simbólica de um estado-nação, da ideia de lar e de pertencimento relacionados à terra.  

 

A exploração de Lagomarsino das manifestações indiciais da imaterialidade, em gestos, fumaça e ondas de luz, trata de outro tipo de impressão, de lembrança e de viagem. Transatlantic II (From Santos to Trelleborg) (2022-2024), conta uma história de migração através da marca da luz e sua capacidade de alcançar lugares improváveis. Depois de viver vários anos entre Malmö e São Paulo, os artistas decidiram mudar e finalmente se estabelecerem na Suécia, país natal de Lagomarsino. Papel fotográfico não exposto foi inserido entre as páginas dos livros de Zaccagnini e Lagomarsino, que foram embalados e enviados do Brasil para a Suécia em um contêiner junto com seus pertences pessoais. Ao serem recebidos, os papéis foram revelados, mostrando o índice de exposição à luz, mas também a impressão dos livros dentro dos quais foram colocados; uma marca da viagem transatlântica. Yo también soy humo (Também sou fumo) (2020), conta a história de outra jornada; o exílio dos pais de Lagomarsino, fugindo da violência implacável da guerra suja travada pela ditadura militar na Argentina contra dissidentes de esquerda em meados da década de 1970. Na tela, a imagem estática de um cartão-postal retratando Port Vell, em Barcelona, e a estátua de Cristóvão Colombo no topo de uma coluna apontando para o Novo Mundo, enquanto uma narração do pai do artista reconta a incerteza de sua chegada à Europa e o momento em que, durante o cigarro que fumou sentado na mala, decidiu esquecer o medo e a morte que ele e sua família haviam deixado para trás. 

 

Uma pequena obra de Zaccagnini, cujo título, Personal, Archeological, and General (2023), poderia resumir o espírito que permeia esta exposição, que vai do profundamente pessoal ao geral e é mediada pela investigação arqueológica. Uma página aleatória do Illustrated London News, de fevereiro de 1909 – que contém notícias das sufragistas que estamparam um Zeppelin com o slogan “Votos para Mulheres”, de um incêndio em uma fábrica, do naufrágio do SS Penguin na costa da Nova Zelândia e um artigo sobre um local de escavação em Roma, com o título “Pessoal, Arqueológico e Geral” – está grosseiramente dobrada de tal forma que se sustenta sozinha e as diferentes notícias se sobrepõem e quase se tocam, “juntando terra, fogo, ar e água” em uma página amassada. Esse sentido de resgate histórico, tanto pessoal quanto coletivo, está no centro de Película hablada (2018-2019), que conta a história das viagens migratórias de seu avô em meio a eventos mundiais tão aleatórios quanto os da página amassada do jornal de 1909; A Primeira Guerra Mundial, outro naufrágio, do transatlântico SS Principessa Mafalda, onde o seu bisavô morreu na travessia transatlântica do Chile para a Itália, o falecimento da Princesa Mafalda em Buchenwald durante a Segunda Guerra Mundial, a história dos imigrantes europeus na América do Sul… Uma história de idas e vindas que, para Zaccagnini, também conta outra história que marcou o encontro entre ambos os mundos em cada lado do Atlântico e informa as respectivas interrogações de ambos os artistas sobre a História, a de um ethos civilizacional que opõe “selvageria da civilização, animal do humano, barbárie do esclarecimento.” 

– Julieta González

Obras
Vistas da exposição