CONSTRUÇÃO Group Show

Apresentação

Organizado por Renato Silva

Adriana Varejão, Adriano Costa, Ana Mendieta, Anna Bella Geiger, Antonio Dias, Antonio Obá, Carla Zaccagnini, Carlos Vergara, Claudia Andujar, Coco Fusco, Dalton Paula, Daniel Steegmann Mangrané, Deyson Gilbert, Doris Salcedo, Éder Oliveira, Fernanda Andrade, Flávio Cerqueira, Gustavo Speridião, Hariel Revignet, Jac Leirner, Lawrence Weiner, Lucas Arruda, Marcela Cantuaria, Marilia Furman, Mauro Restiffe, Otobong Nkanga, Paulo Nazareth, Pope L., Renata Felinto, Roberto Winter, Rodrigo D'Alcântara Rosana Paulino, Rubem Valentim, Runo Lagomarsino, Theaster Gates

O ano de 1971 pode ser entendido como o princípio da era digital. Nele o microprocessador – considerado o cérebro do computador – fora inventado e reconfigurou a informática de maneira a redirecionar as infinitas conquistas no campo tecnológico a que hoje temos acesso. 

O mundo era ainda envolto pela Guerra Fria e ecoando as revoluções culturais e de costumes pós 68, as ideias progressistas ganhavam força e o movimento de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos estava em forte ebulição com os Panteras Negras chegando ao ápice de adesões em suas fileiras. O exército americano começava a deixar o Vietnã em uma lenta retirada enquanto milhares marchavam contra a guerra em todo o mundo. Na Europa o fantasma do terrorismo causava o medo com o fortalecimento de brigadas que se organizavam e comunicavam-se entre elas para o aperfeiçoamento de suas práticas. O Assassinato de Che Guevara na selva Boliviana de certa forma encerrava dessa forma o ciclo revolucionário na America Latina inaugurado pela Revolução Cubana e as ditaduras militares no continente pontuavam o retrocesso de sua violenta conduta através das forças de estado. 

O Brasil que se esforçava de maneira abissal em direção contrária ao futuro do conhecimento, nossa sociedade estava margulhada nos anos de chumbo. O horror da ditadura que nesse ano endurecia suas táticas de prisões e torturas instituía a insidiosa barbárie que estimulava os desejos mais primários do fetiche humano pelo sofrimento daquele que ousava pensar em direção contrária ao conservadorismo militar. Ironicamente, o discurso propagandeava que o Brasil era “o país do futuro”. Trágica contradição que continua nos assombrando pelas entrelinhas do marketing da atual conjuntura.  

Se a sociedade brasileira era manchada em sua história pelo amargo da farsa criada pelo militarismo, esse fora o momento em que as discussões no campo intelectual ganharam contornos mais sólidos e enriquecidas pela proliferação de ideias libertárias nas artes, no cinema, na literatura, no teatro e na música. Nesse 71 esse era o contexto para que o compositor fluminense Francisco Buarque de Holanda após seu período de autoexílio na Europa compusesse uma das mais emblemáticas obras do cancioneiro popular brasileiro. 

A canção “Construção” de Chico Buarque à primeira vista nos da conta da rotina de um trabalhador da construção civil que tem seu fim despencando do edifício que ajuda a levantar. Num sentido sociológico as infinitas construções que caracterizam a canção se aprofundam numa coreografia que demarca desde as relações dos trabalhadores com a precarização do trabalho quando do período militar, passando pelo descaso da classe média quanto a essa situação e também pela aceitação da engenharia utópica de um modelo fracassado de ditadura que empobrecia nosso país em galopante corrida rumo ao abismo econômico, social e de quaisquer sentidos humanos. 

CONSTRUÇÃO 
Foram muitos os acontecimentos que transbordaram as décadas de 60 e 70 com vasto material de farta combustão, e que foram cruciais para o fortalecimento do diálogo entre a arte e o mundo. As respostas dos artistas às constantes mutações que nos revelam os contornos e transformações na geopolítica mundial no passar dos tempos,  sempre foram de imensa serventia para o fortalecimento das discussões e análises estéticas e conceituais. Grande parte dessa retórica formatou as temáticas de inúmeras exposições, que em sua maioria e num passado recente, brilhantemente se propuseram a revisitar a história para nos dar conta do que não podemos esquecer.

O momento atual de engajamento político e social nos instiga a reascender as bases dialéticas da discussão sobre os rumos dessa sociedade que novamente aposta no indecente retrocesso no campo ideológico com o avanço das pautas conservadoras. Detendo-se no agora, entretanto, a exposição não se ajusta aos infinitos discursos que tendem a moralizar as bases subjetivas da razão e intenciona apenas ampliar, através das narrativas colocadas por cada um dos trabalhos apresentados, a reflexão sobre as finas camadas que se projetam como tentativas de entender o tempo confuso que se forma no horizonte.  

O Futuro do pretérito (2016/2017) de Carla Zaccagnini é composto por um aquário com aranhas, que tecem suas teias envolvendo livros escritos entre 1909 e 1941. Todos de autores europeus que chamam o Brasil de país do futuro. Simbolizado aqui está o atraso tanto em sua urgência narrativa como em sua forma de juntar distintas bases argumentativas que projetavam uma mesma imagem. A esperança desse futuro, vista no hoje, nos incomoda de sobremaneira. Assusta-nos pensar que nossos dias são essa imagem carcomida, ultrapassada no emaranhado das teias das aranhas que envolvem esses tomos como que dissessem muito mais sobre a arte e a cultura de uma nação do que as vagas ideias temperadas pelo autoritarismo conservador que as curam com as surreais políticas para o presente.  

Esses são tempos ásperos. O racismo velado causador do genocídio da população negra nas periferias, o trabalho sistemático de aniquilação do que restou dos povos indígenas, os ataques crescentes as religiões de matriz africana, a violência que gera os ataques as pessoas LGBTQI+ e o crescente ódio conservador que acaba por formatar o pensamento de grande parte das sociedades, todas essas são questões, que nesse momento já deveriam ter sido ultrapassadas, mas que, ao contrário, editam uma nova fábula que nos pressiona a ponto de ferir mortalmente os que pensam no sentido contrário a ordem que se institui. A discussão sobre o que resulta essa força ignara, avança no espaço expositivo norteada por muitos trabalhos que projetam suas mais variadas formas, sons e gestos no intuito de levar o espectador a uma reflexão mais ampla sobre o papel da arte nessa narrativa surreal. E que por muitas vezes nos traz a sensação de que devamos refletir sobre a nossa própria estagnação como que ressoando um alarme que nos instigue a acordarmos. 

Nesse intento podemos insistir que essa exposição se coloca como uma singela chama acesa pelo gênio criativo dos artistas, para que essa chacoalhe as instâncias que formam o nosso tecido social e todas as suas camadas.  O debate sobre o lugar do artista negro no cenário artístico contemporâneo entrecorta a narrativa da exposição com trabalhos que percorrem as questões sobre o modernismo e sua origem classista. Também se impõe compreender a atual fase que busca na discussão sobre a presença negra nas instituições e mostras de arte que varrem hoje o globo e que pode ser observada além das ambivalências hierárquicas e do domínio de forças que surge em alguns dos trabalhos apresentados o que nos instiga entender esse lugar dissonante preenchido das misérias dos sentidos sobre a razão e o real enquanto valor. Como se num cenário imaginado da partilha do dantesco com a crua realidade da vida nesse campo social o corpo do artista Pope L. que rasteja pelas ruas de Nova Iorque tendo marcado em suas costas o plano perfeito talvez nos de conta da descontinuação dessa subjetividade da existência da arte enquanto meio para o diálogo. Esse plano, que ecoa em muitos dos momentos dessa mostra, tende a delinear a ideia de que a arte deva, portanto, insistir em assumir a contundência desse raconto.  

Construção também nos entrega algumas linhas para que pensemos num mundo que consiga se opor aos projetos de retenção da linguagem como forma criativa de ambicionar a percepção sobre liberdades e direitos. Debruçar-se sobre os projetos desses artistas é, antes de tudo, uma forma de discernirmos o lado em que queremos estar. Acreditamos que os artistas convidados - a despeito de emergirem de trajetórias contemporâneas divergentes - trazem em suas práticas algo que está em consonância com as noções de transformação e renovação cíclicas. 

Se a canção de Buarque denotava a poesia, que nada mais é do que a arte de organizar as palavras no tempo, assim o fez o artista em sua absoluta maestria quando posiciona as paroxítonas que flutuam no decorrer da canção de maneira a se posicionarem sem um sentido lógico. A nobreza com que é tratada a linguagem na canção, nos inspira quando nosso pensar sobre a exposição, sobre os artistas e trabalhos, de alguma forma se ligam através de uma camada tênue de inquietude e reflexão, e nos entregam aquilo que seu olhar capta   como que testemunhando numa frequência e atenção que não a nossa. Não importa se no cânone ou fora dele, a premissa é a de que possamos encontrar nas distintas linhas criativas que nos são apresentadas por estes um veio uma forma de consciência crítica sobre o agora, e o intento de rejuntar os cacos de um mundo que parece se despedaçar insistentemente. 

Acreditamos que inspirados pela poesia e pelos riquíssimos desdobramentos linguísticos da canção de Chico Buarque, os trabalhos dos artistas em Construção balizem o espaço para a reflexão um tanto mais ampla sobre a aridez do pensamento político institucionalizado na contemporaneidade. No cenário atual, o mínimo se faz urgente quando o que se aproxima no horizonte já não se mostra apenas turbulento, mas sim de completa escuridão. Que possamos aguçar um tanto mais a nossa reflexão quanto ao lirismo da arte que nos faz refletir sobre nossos anseios de um mundo melhorado.

Obras
Vistas da exposição