Do cômico e do trágico Paulo Nimer Pjota

Apresentação

A Mendes Wood DM tem o prazer de apresentar "Do cômico e do trágico", a nova exposição individual de Paulo Nimer Pjota, no espaço da Barra Funda, em São Paulo.

Quais seriam as possíveis conexões entre representações de um casal de divindades budistas, cenas domésticas, e as imagens que ornamentam tanto vasos chineses quanto objetos pré-colombianos?

Em “Do cômico e do trágico”, Paulo Nimer Pjota retoma os principais aspectos de sua produção: o rearranjo de projeções simbólicas que compõem cosmologias de sociedades geográfica e temporalmente distantes; o resgate do legado de séculos de produção iconográfica, rompendo com a noção hegemônica da história humana como um trajeto linear; e um estudo sobre a repetição e permanência de narrativas mitológicas compartilhadas por diferentes culturas, como o mito do duplo.

Quando o visitei em seu ateliê no Ipiranga, em São Paulo, em março, pude ver alguns dos trabalhos que iriam compor sua nova exposição. Mesmo que alguns deles ainda estivessem em estágio inicial, já era possível perceber os movimentos que balizavam seu empenho. Nas paredes estava um grupo de três pinturas, estilizadas como gravuras alquímicas medievais. Em cada uma das telas era notável a representação de uma estranha figura bípede, de corporalidade amorfa e com ares de górgona. Era difícil afirmar a funcionalidade dos elementos que compunham aqueles corpos, talvez um olhar mais atento percebesse que três deles eram representações dos Citipati, divindades protetoras budistas frequentemente retratadas como um casal binário de caveiras, comprometido a passar toda a eternidade em uma dança frenética associada aos ciclos de vida e morte.  

Sabemos que diferentes culturas ao longo dos tempos lidam com momentos de transição (vida - morte) ou emoções humanas díspares (alegria - tristeza) como inseparáveis e complementares. Ao escolher representar a dupla de entidades, Pjota parece aludir ao caráter paradoxal do título da exposição, nos convidando a encarar esses trabalhos como reflexões sobre o mito do duplo e sobre a circularidade e recorrência de narrativas dessa sorte entre diferentes contextos humanos. Com isso em mente, ao olhar novamente para as duas maiores pinturas da mesma série, o aspecto lúgubre que elas inicialmente me provocaram deu espaço, também, a um sentimento mais jocoso.

Em uma delas, posicionada ao centro, seus membros sustentam tanto um vaso pré-colombiano quanto um greco-romano - este último com uma pequena medusa em sua superfície. Já no seu duplo, mais à direita, seus membros assumem as formas de um elmo romano e novamente de um vaso pré-colombiano. Na terceira pintura, a criatura repousa bem próxima ao canto da tela, está sentada e, ao contrário das anteriores, dois dos objetos não parecem meramente compor seu corpo, mas, sim, serem dádivas ofertadas para o casal. Em termos de composição, as três estranhas figuras se destacam devido aos contrastes das cores e da própria fatura da tela. Apesar de nenhuma delas apresentar um ponto de fuga de uma perspectiva tradicional, Paulo construiu o senso de profundidade ao riscar as superfícies, ao invés de adicionar mais camadas de tintas sobre a tela.        

Em Colheita de flores mágicas, a tela se divide em dois segmentos pela sobreposição de diferentes materiais e cores: à esquerda uma chapa branca de metal é fixada sobre o suporte da pintura enquanto também serve de fundo para a súbita aparição de um elemento tridimensional, uma máscara de bronze. Por sua vez, à direita, sobre outra estranha figura bípede, há uma máscara, dessa vez de origem guatemalteca, e um vaso micênico. Esses elementos juntos, devido a uma diversidade de detalhes e de cores, denotam uma relação diferente entre a criatura e os objetos, e não parecem compor a tela da mesma maneira que percebemos na série anterior.  Se as ranhuras presentes em Mercúrio eram as principais ferramentas para a criação de profundidade, aqui elas se associam a um conjunto de outros vetores na composição da tela.

Em Cerimônia com papoula, a diferença entre as figuras e o fundo se dá por meio das texturas - enquanto o fundo é mais difuso, no corpo da figura localizada à esquerda, Pjota parece repetir o gesto da fatura de maneira mais densa e concentrada. A pintura também apresenta dois ex-votos, que apesar da sua abundância no contexto artístico-religioso brasileiro, variações formais dessas esculturas, são amplamente produzidos da Ásia à Europa. O representado à esquerda, de incomum semelhança com uma caveira humana, se sustenta no corpo de uma figura de forma mais antropomórfica em relação às outras pinturas. O outro, abandonado no canto direito da tela, cria com seu volume uma noção de perspectiva que é reforçada pelo conjunto de flores em bronze, que acompanha e dá título à obra.          

O protagonismo de criaturas míticas é substituído por situações domésticas em trabalhos como Cenas de casa (vaso com dragão)Estúdio vermelho e Estúdio azul. Em comum, além da evidente referência às naturezas-mortas, os três apresentam poucas variações tonais em seus planos de fundo.          

Retomando a ideia do duplo, Estúdio vermelho e Estúdio azul parecem obras-irmãs. Em cada uma das telas o artista equilibra dois tipos de representações formais - de um lado, pinta papoulas, bastante informado por técnicas mais acadêmicas, e do outro, pressionadas contra o plano de fundo, flores sem o mesmo aspecto formal dividem a cena com outros objetos domésticos.

Por fim, Cenas de casa (vaso com dragão) sintetiza os esforços da prática artística de Pjota - a maior parte de sua superfície está coberta por estudos, que se assemelham a inscrições urbanas e remetem aos anos formativos do artista. Na metade inferior da tela, notamos uma mesa onde repousa o vaso com motivos de origem aparentemente chinesa que batiza o trabalho. Nas bordas, observamos diversos recortes de panos de prato com padronagem floral emoldurando a tela. De maneira muito precisa, Pjota conjuga essa série de apropriações colocando sua extensa lista de referências no mesmo status - ele rompe com uma histórica equação de valor, evidenciando a fragilidade das distinções entre categorias artísticas e insistindo na reflexão sobre a coletividade das produções culturais humanas.

As obras de Pjota funcionam como cápsulas do tempo, armazenando histórias, louvando as alteridades e defendendo a vontade de diálogo. Ao olhar para a história da arte, para símbolos e elementos de cultura material, nesse novo conjunto de pinturas e esculturas, o artista estabelece diálogos não convencionais entre povos, tempos e localidades. Essa mescla não resulta apenas na restauração de laços e histórias rompidos, mas também revela conexões entre os repertórios culturais de grupos humanos dispersos pelo globo.

Thiago de Paula Souza  
Maio 2023

Obras
Vistas da exposição