Solange Pessoa

Apresentação

Solange Pessoa: memória e desencanto

Minas não há mais – Carlos Drummond de Andrade

Minas Gerais tem fraudes, tem quimeras – Paulo Mendes Campos

Há no trabalho de Solange Pessoa um acentuado sentimento ruinoso em relação ao tempo e sua ação. A memória que perpassa sua produção está ligada sobretudo a Minas Gerais, estado em que nasceu e onde vive. Carlos Drummond de Andrade, Milton Nascimento, Pedro Nava, Paulo Mendes Campos, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e tantos outros mineiros que a artista conhece e admira também revelaram, cada um a seu modo, essa mescla de amor e desencanto em relação a seu estado.

Nessa exposição na Mendes Wood DM, em São Paulo, uma das melhores que a artista já realizou no país, quase todos os trabalhos estabelecem uma relação ambígua com a memória e a ação do tempo sobre coisas e pessoas. As Caveiras em pedra-sabão se assemelham a grandes seixos rolados que a ação da água e o atrito com a areia pacientemente arredondou as arestas e criou algumas concavidades.

Nos notáveis desenhos sobre tela, com figuras que lembram animais existentes ou imaginários, Solange revisita as inscrições rupestres com que com que tem alguma familiaridade. A adesão desses desenhos e pinturas à irregularidade das paredes das cavernas os conduz, na passagem para os desenhos de artista, a soluções gráficas que mantêm formalmente um parentesco com as Caveiras pela recusa a formas regulares e pelo aspecto meio orgânico.

Embora sejam realizados sobre uma superfície plana (a tela), a estilização dos animais mantém o aspecto sinuoso, meio esquemático e irregular das inscrições rupestres. A geometria não tem vez nesses traços arcaicos. E algo semelhante ocorre com suas Fontes e com as esculturas de bronze, todas elas movidas por um processo construtivo em que a ação de uma mão titubeante, perto do artesanal, tem papel decisivo na constituição de formas de forte ressonância orgânica.

Nessa exposição nenhuma obra lembra os processos industriais de produção de objetos. A docilidade da pedra-sabão, uma rocha macia que nos faz lembrar de imediato a produção de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, contribui decisivamente tanto para remeter esses objetos a Minas Gerais quanto para a realização do sentido de fundo das obras de Solange Pessoa.

Por mais que seus trabalhos insistam em reatar com tradições de seu estado de origem, eles estão longe de reforçar o estereótipo da mineiridade, uma noção vaga, como todas as formulações míticas, e que parece se referir a um conjunto orgulhoso de traços da população de Minas: temperamento cismado e arredio, apego às tradições locais, discrição acentuada, bom senso, moderação e equilíbrio. Enfim, todas as características de um povo que por muito tempo levou uma vida de relativo isolamento em relação ao resto do país, com a consequente afirmação de autossuficiência.

A atração que os modernistas de São Paulo revelaram pelas cidades históricas mineiras está ligada ao intuito, sobretudo de Mario de Andrade, de contribuir para a edificação de uma identidade nacional que parecia já estar configurada em Minas Gerais.

As esculturas em pedra-sabão Fontes e Mim mesmas ajudam a esclarecer esse aparente paradoxo entre afeto e tristeza – trazer para perto lembranças das Minas Gerais e, ao mesmo tempo, conferir a elas uma configuração arredia. Nessas esculturas, temos simultaneamente a quimera de uma autossuficiência plena (a quintessência da ideologia da mineiridade), pois elas se fecham sobre si mesmas e um oco que abriga figuras serpentinatas. Meter a mão nessas cumbucas pode custar a vida.

Esse texto – que já mais longe do que deveria – procura acentuar um movimento pendular – talvez a única reação possível àquilo que fascina e, ao mesmo tempo dói – que não por acaso tensionou as melhores mentes desse estado tão singular. Mas me pergunto se algo dessa sociedade pudica e silente não tem uma forte ligação a tudo aquilo que Solange Pessoa se opõe.

Não acredito que haja aí um masoquismo cultural, embora, a meu ver, seja praticamente impossível aderirmos univocamente também ao Brasil. Um país que, segundo os estrangeiros, possui um povo hospitaleiro e gentil, embora aqui sejam assassinadas ao menos 50 mil pessoas por ano e algo próximo a 50 mil mulheres também sejam estupradas anualmente. Até hoje a guerra civil da Síria matou 300 mil crianças, mulheres e homens.

Aqui deixamos momentaneamente as Minas Gerais e constatamos que a produção de Solange Pessoa entende as Minas Gerais, estado responsável, em função do ciclo do ouro, pelo começo da integração do Brasil e da criação de um mercado interno, que a cana e o café não tiveram condições de gerar, quase como uma matriz das mazelas e virtudes do Brasil.

Em função da singularíssima origem de nossa formação étnica, feita de escravos, emigrantes europeus, orientais, mais as populações indígenas autóctones, essa sociedade realmente multirracial, injusta, mas sem conflitos étnicos e religiosos relevantes, muitas vezes foi entendida como a possível célula mater de um novo socialismo, menos autoritário, mais fraterno e amistoso. A dialética da malandragem, Antonio Candido, um de nossos maiores pensadores de todos os tempos, talvez seja a formulação mais brilhante desse projeto.

Roberto Schwarz, outro intelectual brilhante, cuja formação deve muito a Antonio Candido, embora reconhecendo a formidável interpretação que seu ex-professor faz de Memórias de um sargento de milícia, de Manuel Antônio de Almeida, faz uma crítica ao professor. Se a malandragem assenta sobre uma relação ambígua com a lei, a moral e os costumes, não seria plausível ver traços dessa prática num governo despótico, que igualmente os despreza?

A discussão é longa e constitui uma das mais produtivas do país. Minas Gerais não está livre desse processo, mas o atraso de muitas de suas regiões tende a tornar a existência desses traços ainda mais inclinada ao cruel do que ao espírito hospitaleiro que o tempo dos tropeiros impregnou os caminhos das Gerais.

– Rodrigo Naves

Obras
Vistas da exposição