Cada cosa es Babel Mariana Castillo Deball

Apresentação

 

“E o que acontece se olharmos na direção oposta, se lermos a arte contemporânea como uma arqueologia do futuro?” 

— Mariana Castillo Deball

 

Um objeto, erodido pelo tempo, despedaça na palma da mão. Uma torre desaba. Um pedreiro martela, talhando pedras. Em sua segunda exposição individual na Mendes Wood DM Bruxelas, Cada cosa es Babel [Cada coisa é Babel], Mariana Castillo Deball apresenta uma seleção de gravuras em linóleo, sobre papel feito à mão, feitas em colaboração com o produtor de papel, Gangolf Ulbricht, e impressas na Keystone Editions, ambas localizadas em Berlim. Para esta série, a artista começou desenhando fragmentos desconstruídos de imagens existentes da Torre de Babel – detalhes de gravuras do século XVII e de pinturas de Pieter Bruegel, o Velho, entre outros – e remixando esses elementos em novas constelações que compõem novas camadas de histórias. Como o título da exposição sugere, tudo é Babel; tudo conta uma história e deixa uma marca, mesmo, ou precisamente, onde falha e desmorona, deixando para trás suas origens.

“Sucedeu que, partindo eles do Oriente, deram com uma planície na terra de Sinar; e habitaram ali. E disseram uns aos outros: Vinde, façamos tijolos e queimemo-los bem (…) E disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo topo chegue até os céus; e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra” [11:2-4]. Este é o início da história de Babel no livro de Gênesis no Antigo Testamento. A construção da torre foi interrompida quando Deus criou uma confusão de idiomas – a multiplicação das línguas. Alguns estudiosos e historiadores se perguntam em que ponto essa história começou a fazer sentido para nós como história: na ausência de enredo de uma língua universal, progredindo eficientemente em direção a um objetivo unificado, ou em sua reviravolta, quando as pessoas param de fazer sentido umas para as outras quando começam a falar, de repente, em línguas diferentes? 1 Uma interpretação da história é que Babel “tornou célebre seu nome”, não apesar do feitiço divino, mas por causa dele. O nome hebraico Babel (בבל) deriva do verbo balal, que significa confundir. O substantivo árabe بَلْبَلة ou balbala se refere a desordem, confusão e caos.2 Pode ser o caso de que a palavra inglesa babble [balbuciar] tenha suas origens na palavra Babel, embora também possa ser uma onomatopeia referente ao som que os bebês fazem antes de adquirir habilidades linguísticas. Em qualquer caso, Babel, ou balbuciar, é o que vem antes e depois de uma língua universal definida para unir as pessoas na terra com o conhecimento divino dos céus.

Jacques Derrida escreve que "[a] ‘torre de Babel’ não representa só a multiplicidade irredutível das línguas, exibe também o inacabado, a impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de alcançar algo que é da ordem da edificação, da construção arquitetônica, do sistema e da arquitetura."Em um texto recente publicado no periódico de pesquisa Ixiptla, editado por Mariana Castillo Deball, ela escreve que o fórum da sociedade grega antiga é tanto um espaço físico quanto as pessoas que se reúnem nele.2 Algo semelhante pode ser dito sobre a torre de Babel. É tanto arquitetura quanto a materialização de uma língua monolítica, ou o que tal língua se esforça para alcançar: o projeto utópico do conhecimento absoluto (celestial), que está fadado ao fracasso. E Babel, como Derrida aponta, é também o próprio fracasso, que significa o evento em sua marca. Babel em ruínas. Esse fracasso é contado através da dispersão das pessoas em diferentes direções “por toda a terra”, e essa dispersão também encontra seu eco visual nas obras mostradas nesta exposição.

Os desenhos de Mariana Castillo Deball mostram a torre em vários estágios de construção e colapso. Em um desenho, uma mulher segura o projeto da torre, enquanto outro retrata uma comunidade de construtores montando acampamento nas proximidades da torre em construção. Outro desenho mostra Babel em ruínas. Deball inclui outros elementos pictóricos, como objetos etnográficos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, incluindo pequenas figuras de barro feitas pelos índios Karajá, habitantes do Brasil Central, bem como petecas feitas de palha e penas. 3 Esses motivos, que derivam de outros projetos em que a artista trabalhou simultaneamente, são de interesse contínuo para ela, assim como Babel: uma história, um edifício e uma ruína.

Transformando esses desenhos em linóleo, Castillo Deball os imprimiu em papel fabricado por Gangolf Ulbricht, um colaborador com quem ela já trabalhou antes. A partir dessas impressões, que ela destruiu e rasgou em pedaços de tamanhos diferentes, ela criou novas folhas de papel em três cores diferentes: rosa toranja, verde pistache e marrom chocolate. Essas folhas de papel de 56 x 76 cm lembram um local de escavação arqueológica, com fragmentos de cerâmica capturados no solo, congelados no tempo. Enquanto alguns desses papéis são mantidos nesse estado, outros servem como superfície e fundo para uma nova rodada de impressões, de modo que os desenhos em linóleo começam a se repetir por diferentes camadas.

Uma história progride através de reviravoltas em seu enredo e da passagem do tempo. Isso também reflete como nosso relacionamento com as coisas, as coisas feitas pelo homem, se intensifica ao longo do tempo. Múltiplas leituras são possíveis à medida que o objeto é percebido através de diferentes olhares; o objeto não fala mais por si só. Mais do que apresentar uma única imagem que emerge de um processo, as obras exibidas nesta exposição revelam o processo contínuo da artista em ação, a prática de narrar através da matéria e do tempo – história sobre história em uma construção contínua aspirando à perfeição, mas sempre deixando fragmentos em seu rastro.

— MM Goosen

[1] Veja, por exemplo: Jean Benet, The Construction of the Tower of Babel. Traduzido para o inglês por Adrian Nathan West. Wakefield Press, 2017.

2 Para obter mais informações sobre a recepção do mito de Babel nas culturas e línguas árabes, consulte: Abdelfatah Kilito, The Tongue of Adam. Traduzido para o inglês por Robyn Creswell. New Directions, Nova York: 2016.

3 Jacques Derrida, Torres de Babel. Traduzido por Junia Barreto. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2006.  

4 Mariana Castillo Deball, About the Book’s Grid in: Ixiptla, Spring 2023, Vol. V, Amarantus. Bom Dia Boa Tarde Boa Noite, Berlim 2023. pp. 7-19. 

5 Em 2 de setembro de 2018, houve um incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro que queimou toda a sua coleção. Este é o assunto da exposição de Castillo Deball no Pivô em São Paulo, A Noite, que foi inaugurada em setembro de 2023, na mesma data do incêndio.

Obras
Vistas da exposição