AKEWANI, Prece da Terra Hariel Revignet

Apresentação

AKEWANI, prece da terra A poética de Hariel Revignet parte da construção de tempos-espaços que ativam curas em corpos cuja oficialidade histórica configurou como minorizados, sob a perspectiva do afeto como processo e/ou ação prática. Dessa forma, torna-se importante dizer que a pesquisa da artista se centra nas intersecções entre o social, o ancestral e o espiritual, em um panorama autobiogeográfico. De acordo com Manoela dos Anjos Afonso Rodrigues (2017), o conceito de autobiogeografia consiste em “uma metodologia crítica, situada, e criativa, capaz de articular práticas decoloniais, permitindo que a consciência imigrante floresça”, no qual a autora utiliza-se de abordagens oferecidas pela geografia humanista e pela geografia feminista.

Tal conceito adotado por Hariel em suas pesquisas artísticas, contribui para uma desobediência epistêmica e política no campo da arte, uma vez que a construção de narrativas a partir das imagens corrobora para criação e alimentação de um imaginário coletivo hegemônico. Por isso, há a necessidade cada vez mais urgente da criação de contra-narrativas (e/ou outros discursos) que ofereçam à história a revisitação de ideias coloniais ocidentais por parte daquelas e daqueles que foram inscritos fora dessa oficialidade. Ao descolonizar as referências do que é clássico, especialmente no campo da pintura (sempre tido como essencialmente branco, eurocêntrico, masculino e racional), a artista subverte esse discurso, propondo uma representação pictórica que deriva de tecnologias ancestrais rizomáticas que vão além do tempo-espaço linear, tal como conhecemo-o.

Dessa forma, sua produção artistica revela subjetividades da artista enquanto mulher negra ameríndia em travessia entre o Brasil e o Gabão; de sua autobiografia em contraposição a pensar a si, também, como um corpo negro coletivo. Se o desejo de narrar a própria história possibilita ao sujeito o direito de estabelecer suas próprias identidades e nomear sua própria realidade; então autodenominar-se estabelece uma autoconsciência que não pode mais ser moldada a partir do outro, exceto por si próprio. Sendo assim, a artista começa a traçar sua história a partir da construção da sua árvore genealógica. Vinda de uma linhagem matriarcal, são essas mulheres que cercam Hariel - seja no plano físico ou espiritual - que apontam suas origens africanas e indígenas e fundamentam as obras da artista.

O que você está disposta a dar e receber?

Com obras criadas entre 2020 e 2021, AKEWAMI, prece da terra apresenta um conjunto de pinturas que, embora não reflitam sobre o cenário pandêmico - instaurado mundialmente, e com consequências trágicas no Brasil -, possuem cargas simbólicas que nos fazem questionar a necessidade de repensar as estruturas de poder vigentes, cujo caráter não regenerativo tem nos empurrado à outras catástrofes já anunciadas.

Se observamos cada vez mais uma disputa pela terra, perpetuando assim o extrativismo instaurado desde o descobrimento do Brasil, onde tudo se tira e nada se devolve, a contra-narrativa desta exposição surge como um chamamento de resgate da terra como direito à vida. Falar do direito de viver em um momento onde milhares de vidas foram perdidas por puro e absoluto descaso governamental. Para isso, Hariel cria pinturas-instalações que nos colocam diante da necessidade da desestruturação do conhecido para adentrar em outros campos de saberes. Um movimento de troca constante, o qual é preciso pedir licença ao entrar, e deixar algo em troca ao sair.

Suas pinturas registram cenas de povos originários e afro-diaspóricos em comunhão com os saberes da terra, a exemplo de Contadeiras. Nesta série, mulheres se põem a contar semestes que servirão de alimentos à terra e que, por consequência, retornarão como alimento aos seus. Um gesto sutil, mas potente, de reimaginação; de pensar a natureza como fertilidade, como forma de gestar e gerar novos frutos; de respeitá-la como algo cíclico e se colocar nessa espiral de regeneração, pois caso contrário, estaremos fadados ao inverso de tudo que ela pode nos proporcionar. Já em Procissão, observamos corpos carregando oferendas, que também podem ser compreendidas como coroas. Esse movimento de deslocação simbólica faz com que percebamos que os verdadeiros herdeiros da terra serão os únicos capazes de resgatá-la. Já outras pinturas carregam em si plantas e símbolos de poder energético, que religiosamente servem para ativar forças ritualísticas, fazendo a ponte entre o plano físico e o espiritual. Nesse sentido, a artista nos mostra que é preciso abdicar de posturas conservadoras que corroboram para o adoecimento coletivo da Terra. É preciso cultivar para receber; cultuar para curar; respeitar para criar novos mundos possíveis.  

Ao nos colocar diante de novas/outras perspectivas de repensar e sentir o mundo tal qual o conhecemos, Hariel tece histórias a partir de imagens que confrontam os ideais coloniais vigentes, nos propondo uma experiência de re-imaginação coletiva. Nesse terreno de disputas e da urgência de uma outra forma de organização social, suas pinturas nos oferecem possibilidades de uma articulação interdisciplinar entre ancestralidade e as artes visuais, para a composição de uma narrativa histórica que inclua uma perspectiva de fortalecimento identitário da diáspora e dos povos originários. Queimar fronteiras para que as dívidas sejam pagas. E que essas suas sementes aqui plantadas floresçam e tragam bons frutos para os que ouvirem o chamado da terra. Façam suas preces e agradeçam. AKEWAMI!

–Carollina Lauriano

Obras
Vistas da exposição