Circa MMXIV: Imagination is an Act of Freedom Anna Bella Geiger

Apresentação

(ao meu amor)

Anna Bella Geiger é uma das artistas brasileiras mais importantes do século XX. Sua produção que apresenta grande multiplicidade de meios e processos, assim como sua singular biografia, nos surpreende sempre que nos aprofundamos a respeito. Anna Bella é das mais experimentais artistas na história da gravura brasileira, uma dos mais relevantes expoentes da Nova Figuração em nosso país, reconhecidamente pioneira da vídeo-arte no Brasil e parte da primeira geração de artistas conceituais latino-americanos.

Nascida em 1933, filha de imigrantes judeus poloneses, Anna Bella iniciou os estudos de arte no ateliê de Fayga Ostrower, ao mesmo tempo em que Lygia Pape. Naquele começo dos anos 50, seu trabalho era, então, ligado ao abstracionismo informal, mas, ao longo dos 60 anos seguintes, sua produção tem sido marcada pela constância de rupturas internas.

Anna viveu parte importante de sua vida durante a ditadura militar – o que marcou profundamente seus interesses e posicionamentos. Em 1965, acontece a primeira de muitas rupturas em sua trajetória: é nesse ano que ela abandona a abstração informal e inicia a série de gravuras e desenhos chamada Viscerais. Afinal, como ser abstrato quando o mundo é tão urgente? Se as placas matrizes de gravura eram tradicionalmente retangulares, Anna passou a recortá-las em forma de órgãos humanos. Para Anna, os processos de pesquisa e fatura são também necessariamente fundamentados em estratégias conceituais. Não interessam a Anna Bella formulações conceituais a partir da obra, mas apenas aquelas que existem em função da obra. A sequência das impressões das placas dos Viscerais não é aleatória e nem é pensada para gerar certo resultado visual. Na verdade, essa ordem respeita a ação que está sendo representada. Os elementos devem aparecer no papel na ordem equivalente à da ação. Se é preciso a orelha para que o cotonete possa entrar nela, primeiro imprime-se a orelha e depois o cotonete. Se é preciso da carne e da tábua para o sangue escorrer, o sangue escorrendo deve ser o último a aparecer no papel. Entendendo que nosso corpo é gravado o tempo todo pela vida, Anna percebeu que era nele que deveria procurar e apontar as evidências das marcas desenvolvidas na relação com a realidade. Utilizando o recurso conceitual da transmutação, Anna passou a investigar as vísceras de metal como se pondo a examinar as peças de um verdadeiro corpo que dói. Na superfície do papel, a sequência de impressões cria relevos que nos lembram o corpo impresso ali. Na parte inferior das obras, o título escrito a lápis é imperativo como o sopro de D-us no homem de pó: Estômago está escrito; Estômago o é. Em algumas dessas gravuras, estão impressas as sombras reais das placas matrizes, pois se a placa é verdadeiramente corpo, faz sombra quando à luz. No impressionante espaço em branco, ao redor da imagem, está a espantosa ausência do resto do corpo. Vazio. Que examinamos.

No começo dos anos 70, Anna Bella Geiger passou a exercer atividades pedagógicas ligadas ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Suas aulas se tornaram cada vez mais experimentais até que Anna Bella, com base numa pesquisa sobre o simbólico a partir da leitura obsessiva de Jung e Mircea Eliade, decidiu propor a seus alunos uma investigação sobre a ideia de Centro utilizando apenas terra, a superfície da Terra e os instrumentos (como pás, ancinhos, enxadas, cordas e vassouras) que levariam consigo para a deserta beira da Lagoa de Marapendi, longe da repressão dos militares, na então quase inabitada Zona Oeste carioca. O experimento foi objeto de registros fotográficos e resultou em exposições audio-visuais em que se associava o uso de projetores de slide a equipamentos de som. A relação espiritual e ecológica com a natureza característica desses experimentos tornou o próprio mundo o suporte da arte produzida por Anna. O resultado dessas práticas apontou para a expansão infinita das possibilidades da ação criativa, mas, por isso, também para sua própria exaustão. Isso fez com que Anna ficasse algum tempo sem produzir, se dedicando exclusivamente à atividade intelectual e educativa.

Porém, suas reflexões sobre o simbólico e sobre o Centro continuaram avançando. Em 1974, desenvolvendo sozinha as técnicas de fotogravura e fotosserigrafia a partir de um livro sobre processos gráficos a que conseguira acesso alguns anos antes, Anna Bella Geiger iniciou a série chamada Polaridades. Assim como na fase Viscerais, a palavra aparece no papel gravado, porém, não mais escrita a lápis, mas sim impressa com clichês. Centro, Periferia, Certo, Errado, Finito, Infinito, Dentro, Fora, Parte, Todo, Dia e Noite são algumas das palavras que não eram mais obrigatoriamente localizadas na base da imagem afirmando o figurativo, mas dentro da imagem, agindo como parte de fato integrante da obra e como informação propositalmente posta no espaço de maneira precisa.

Diferentemente do que se poderia esperar, as Polaridades não instauravam simplesmente complementaridades ou oposições, mas indicavam coexistências que, pela relação imagem-palavra, questionavam a própria condição de polaridade por meio de inversões, desorientações, anulações, imprecisões etc.. Em duplas como Todo e Pate, percebe-se uma crítica ao pensamento metonímico, que reapareceria em outros trabalhos como Brasil Nativo/Brasil Alienígena. Esse tipo de estratégia aproximava o eixo da imaginação do eixo da reflexão, e o estímulo à atividade crítica é característica importante e recorrente nos trabalhos feitos no país durante a ditadura militar. A partir de sua pesquisa sobre o simbólico, foram criadas com esses trabalhos, então, formas de reflexão sobre a situação política do país. Ao mesmo tempo afirmar e contradizer as palavras é estratégia que se põe a perverter as bases de uma civilização estruturada pelos eixos de circulação da letra, e, por isso, esses trabalhos apontam também, em outro nível, para formas de inscrição no mundo críticas ao Ocidente e sua modernidade.

Em 1970, Anna conseguiu diretamente da NASA algumas das primeiras fotografias das crateras da Lua. É importante lembrar que isso aconteceu menos de um ano depois do homem ter pousado no satélite natural pela primeira vez. Anna Bella era (e ainda é) casada com o geógrafo Pedro Geiger, e eles, como grande parte de seus amigos, eram ligados à luta da esquerda no Rio de Janeiro. Com quatro filhos, em um contexto da severa repressão, em que havia muito medo em se falar sobre a situação política do país, Anna começou a imprimir as superfícies lunares para que, sobre esse território neutro (a Lua), pudesse falar livremente: como as pessoas que sobem em caixotes na praça londrina. Nesse espaço gráfico-político-imaginário de Anna Bella, inseriram-se as polaridades, e surgiu pela primeira vez em seu trabalho o uso do airbrush.

Nessa mesma época, Anna Bella começava a desenvolver seus ilustres caderninhos, livros de artista de pequena dimensão em que ela investigava questões que lhe pareciam urgentes, como o sistema da arte, a História do Brasil, a cultura brasileira, as relações entre o Primeiro e o Terceiro Mundo etc. A escolha do formato reverbera uma intenção didática, consequência de suas experiências como professora, mas também como mãe de quatro crianças.

No pequeno livro chamado Admissão, que parodia cadernos de exercícios escolares, Anna Bella insere expressões como Hélio Oiticica numa questão de múltipla escolha sobre produtos tropicais como parte de uma investigação sobre a formação da identidade brasileira. No intitulado História do Brasil ilustrada em capítulos, Anna Bella utilizou uma série de reproduções em fotocópia do quadro Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles para recontar de forma crítica a história da relação colonial e também comentar os massacres de comunidades indígenas recorrentes nos anos 70 – apontando para a sociologia de uma população heterogênea que apresenta como características importantes dominação e colonização internas. É nesses cadernos que surgem as imagens originais dos famosos História do Brasil: Little Boys and Girls. O caderninho Sobre a Arte deu origem a importantes trabalhos que a artista desenvolveria durante anos em forma de desenhos, gravuras, pinturas e vídeos como BurocraciaIdeologiaAventureirismoSubjetivismo etc.. Nos cadernos, Novo Atlas I e Novo Atlas II, Anna Bella aumenta a intensidade de sua relação subversiva com os mapas que desenvolve até os dias de hoje.

Anna Bella Geiger, naquele momento dos anos 70, percebeu que mapas são instrumentos utilizados para localizar a si mesmo e ao outro e que, por isso, são instrumentos eficazes de manutenção da dominação e das hegemonias cultural e política. Investigar e agir sobre a representação cartográfica seria, então, ação direta sobre as relações de controle. Ainda criança, Anna Bella herdou de Fayga Ostrower uma precoce obsessão pela arte medieval e o que mais lhe interessava era, sobretudo, a hierarquia da dinâmica construtiva da escala na arte daquele período. A criação de imagens antes da invenção da perspectiva no Renascimento obedecia a uma série de códigos que dependiam do simbólico e das intenções do discurso. Anna Bella, de maneira análoga, em seus trabalhos com mapas, passou a distorcer e relativizar as proporções geográficas com motivações ideológicas. A representação, com o perdão do trocadilho, sempre será uma questão de ponto de vista, mas a perspectiva é a imposição da visão de um único sujeito sobre todos os demais – e com a característica de aparência de verdade irrefutável. Os mapas da modernidade, portanto, como qualquer outro tipo de representação, ao invés de imagens fiéis à natureza ou à verdade, são apenas descrições possíveis do mundo a partir e dentro das relações de poder de uma cultura. Não há objetividade: tudo depende de quem desenha e de quem interpreta. E é aí que habita o interesse de Anna Bella. Criando as próprias regras de representação e interpretação, distintas das eurocêntricas e coloniais, ela operou transformações exatamente onde se negocia a partilha da realidade. Talvez fosse preciso um mapa diferente para um mundo diferente, e esses trabalhos de Anna Bella são cartografias elaboradas pelo marginal no centro do mundo e não mais pelo dominante: por quem subiu à Lua dentro de um apartamento no bairro do Flamengo, e não embarcado nas missões Apolo. Além de nos lembrarem de que não há criação artística, científica ou acadêmica que não seja fruto da imaginação e da subjetividade, seus mapas são utópicos nos dois sentidos: daquilo que é imaginável mas impossível e daquilo imaginável como objetivo ideal de uma luta. Das duas formas, são mapas mobilizadores.

Os caderninhos, os mapas e os vídeos dessa época questionam ativamente a centralidade da Europa nos mapas e na cultura e fazem a obra de Anna ser importante para pensar a descolonização da arte e da cultura brasileira e o início da produção intencionalmente pós-colonial no Brasil. Nesses trabalhos, o sistema da arte, assim como o sistema político e cultural globais, são questionados, desnudados, assinalados e desnaturalizados, e sobre as ruínas da modernidade eurocêntrica, Anna Bella constrói espirais de imagem e linguagem que são e apontam para novas formas e possibilidades de fazer arte, cultura e política. Talvez seja importante dizer que, no início dos anos 50 e no final dos anos 60, Anna Bella havia morado em Nova Iorque, além de ter feito viagens e participado de exposições também na Europa, numa época em que o mundo não era tão pequeno. Por mais de uma vez, ao retornar, deu entrevistas se dizendo desapontada com a arte que encontrara no Ocidente.

Em meados dos anos 70, Anna Bella começou a fazer alguns trabalhos em formato de fotografia amadora e cartões postais. Anna, que tinha participado das VI, VII, VIII e IX Bienais de São Paulo, participou, então, da XXXIX Bienal de Veneza com um trabalho sobre a fome chamado O pão nosso de cada dia em que a falta do pão desenha uma forma que pode ser do Brasil ou da América Latina. No trabalho Camouflage, que discute a identidade brasileira ao mesmo tempo em que retoma a ideia de relação espiritual com a natureza, um tamanduá sobe nas costas da artista até que a mancha da pelugem do animal se transforma no desenho da camiseta de Anna, consagrando sua fusão ou transmutação. O animal em questão, símbolo da natureza selvagem, na verdade, vivia junto a um tatu, três grandes tartarugas e 33 gatos dentro do apartamento da artista.

Outro trabalho da mesma época também feito em postais é o Brasil Nativo/Brasil Alienígena. Num momento após a abertura da rodovia transamazônica, havia incentivo oficial de migração para o norte do país. Com o processo de ocupação da região, tragédias com massacres de tribos indígenas eram comuns. Ao mesmo tempo, a estratégia oficial do Estado era a da legitimação, naturalização e propagação do discurso da mestiçagem e do índio como a raiz comum a todos os brasileiros. Para aquele Estado antidemocrático, era interessante para evitar revoltas que o povo se entendesse como semelhante àquele povo nativo naturalmente pacífico e sorridente em paz com a natureza. Anna Bella encontrou numa banca de jornal um conjunto de postais que exibiam índios dançando, caçando ou brincando com animais. Nos versos, estava escrito Brasil Nativo. Um dado interessante do cartão postal é que ele, em geral, resume o todo a uma parte e, por isso, Anna Bella concluiu que, se aquele era o Brasil Nativo, deveria haver um Brasil Alienígena. Geiger criou, então, traduções para cada uma das imagens junto a suas filhas e as amigas delas. Esse trabalho que na época era enviado de fato como cartão postal, hoje em dia é disposto sempre como duas colunas paralelas gerando comparações que fazem emergir semelhanças e oposições que evidenciam a inexistência de um Brasil nativo e a impossibilidade de uma raiz única em comum a todos os brasileiros. Fica claro, com esse trabalho, que há no Brasil uma estrutura social complexa, injusta e absolutamente heterogênea. Em Brasil Nativo/Brasil Alienígena, o grupo de Anna e o dos índios são pedaços de uma sociedade que nasceu junto à própria fragmentação.

Nos anos 80, ao mesmo tempo em que participava de importantes mostras coletivas internacionais com suas seminais experiências em vídeo iniciadas na década anterior, Anna Bella começava a produção de pinturas que duraria até o começo dos anos 2000. Foi nesse período que, entre outras pinturas da série Pier and Ocean, Anna Bella desenvolveu os chamados Macios, telas acolchoadas esticadas sobre superfícies elípticas.

Nos anos 90, Anna começou a desenvolver a série chamada Fronteiriços, em que gavetas de velhos arquivo de metal são preenchidas com cera na qual são encrustadas formas de mapas além de outros elementos como colunas, anjos, números, pequenos objetos, linhas e diagramas. As gavetas de arquivo funcionam como metáfora do próprio conhecimento, cuja fluidez é ilustrada pela pigmentação dos fluxos da cera. O que vemos é a cristalização de um movimento constante de mutações que criam relações, inversões e associações, podendo fazer elementos emergirem, submergirem, se fundirem, deixarem rastros ou desaparecerem em um mar, análogo à memória e ao conhecimento. Alguns dos Fronteiriços investigam temas específicos como a história da escultura ou as linhas imaginárias como a de TordesilhasOs Fronteiriços, como a série chamada de trabalhos chamados Rolos, são sintomas de um esgotamento da superfície do papel. Se as gravuras dos anos 60 e 70 eram a sobreposição de diversas técnicas e referencias numa mesma superfície. As gravuras dos anos 90 começam a apresentar colagens com diversas técnicas de gravura, desenho e impressão sobre diversos tipos de papel. Os rolos e os Fronteiriços são o esgotamento das duas dimensões. Anna faria, também, experiências com objetos fotográficos e diversos tipos de pequenas instalações.

Nos últimos anos, Anna Bella tem desenvolvido novos Macios em que a costura com linhas aparece como nova operação metafórica. A imagem da América Latina ao lado da África é estrutura formal recorrente nesses novos experimentos. A tensão das linhas faz alusão à tensão criativa que funda os mapas como coisa mental. Além disso, Anna Bella segue elaborando vigorosos Fronteiriços, e suas mais atuais experiências unem, pela primeira vez em sua obra, imagens do corpo humano e formatos de mapas em pequenos backlights.

Essa exposição e esse texto marcam o início da representação de Anna Bella Geiger pela Mendes Wood DM e da pesquisa para um livro sobre seus mais de 60 anos de trabalho. Seu posicionamento crítico a colocou (e coloca) o tempo todo a pensar seu próprio estar no mundo e, por isso, o Lugar, a Ação, a Identidade e o Sujeito. O modo como construiu sua obra fundou um lugar muito parecido com nossa realidade mais imediata, onde a palavra toca a pele e onde metáforas transmutam imagens e palavras em pedaços de terra, pedaços de carne, pedaços de tempo ou pedaços de pão. O subtítulo dessa mostra aparece escrito em anotações, textos e trabalhos da artista desde os anos 70. O trabalho de Anna Bella Geiger é uma grande evidência da imaginação como ato de liberdade, é uma prova da resistência poderosa da possibilidade de desejar. Anna Bella é conhecida por uma famosa expressão que repete até hoje em suas aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Depois de fazer alguma afirmação muito contundente, ela sorri e diz: Eu estou brincando. Mas não estou. Talvez esteja: é a brincadeira como crítica da cultura.

– Bernardo Mosqueira

Obras
Vistas da exposição