5 Paintings Marina Perez Simao
Quase-paisagens
Entre o título da presente exposição e aquilo que é desvelado em suas obras parece haver um paradoxo. De um lado, o lacônico 5 pinturas, de outro, uma série de trabalhos na qual a generosidade das formas e das cores não evocam síntese, mas antes uma visualidade de gênese barroca. Assim, torna-se um desafio deslindar o vínculo com a natureza, a um só tempo concisa e eloquente, que caracteriza a obra de Marina Perez Simão.
Voltemos para a origem destas pinturas. Tudo começa em pequenos cadernos nos quais traços finos, feitos a lápis, nos dão a ver quase nada, um quase nada que já é desenho e ritmo. A cadência que surge nas pinturas é iniciada ali, nas curvas, nos traçados ondulados feitos como uma espécie de escrita automática. Na etapa seguinte, o desafio se dá diante de um elemento fugidio. É nesse momento que, a partir das inúmeras aquarelas sobre papel que precedem as pinturas, a artista realiza um tipo de cartografia que irá guiar o ato pictórico.
Não por acaso, suas telas têm o tamanho justo daquilo que o seu corpo apreende, sua altura e envergadura são os parâmetros seguidos para que os gestos largos possam ganhar toda amplitude. Se testemunhamos uma composição que se inicia com o mínimo (ainda nos desenhos), com vias a formação de um todo (já nas pinturas), quando pensamos no campo das imagens, podemos realizar o caminho inverso, pois o que ocorre é uma decantação do apelo imagético.
Não é descabido associar este conjunto de pinturas ao gênero da paisagem. O modo especialmente acurado com o qual Simão estabelece a sua complexa vizinhança cromática e a constância das linhas sinuosas nos faz “ver” miragens de montanhas, mares, horizontes, luas, céus, onde o que está dado é tão somente cor e forma. A artista trabalha no limite entre abstração e figuração, sempre insinuando e jamais revelando algo. Ao tomar partido da ambiguidade e se afastar do registro literal, dando-nos a tarefa de completar mentalmente aquilo que vemos, Simão trafega na contramão de uma época que tudo mostra, revela, explica, narra.
Sabemos como a aceleração da técnica no campo da estimulação sensorial se desdobra na fragmentação da percepção. Diante da proliferação de estímulos, vemos muito e não vemos nada. Encontramo-nos em meio a um paradoxo. Vivemos entre tecnologias extremamente avançadas ao mesmo tempo que os nossos aparelhos perceptivos se encontram a cada dia mais atrofiados.[i] No lugar de dilatar a sensibilidade, a forma com que essas inovações vêm sendo introduzidas no nosso cotidiano parece antes causar uma anestesia dos sentidos, forjando uma espécie de constante dispersão narcotizante. O mundo 24/7, marcado pela presença massiva da tecnologia, é aquele que testemunha uma inflação narrativa. Tudo deve ser dito, narrado, explicado, fazendo com que aquilo que se revela por meio da forma sensível abstrata, nas entrelinhas, sendo apenas insinuado, tenha gradualmente menos espaço. Esse contexto atual de onipresença imagética e discursiva é, também, o mesmo que flagra uma imaginação a cada dia mais obturada.
Não por acaso, Simão tem na literatura e na música expressões que lhe são muito caras. A artista nos recorda que “a pintura existe onde a palavra falha”. Suas quase-paisagens atuam justamente nesse registro. Nunca narram ou ilustram algo, mas surgem antes como atos pictóricos para aquilo que a linguagem não abarca, convocando, assim, uma imaginação até então adormecida. Seus verdes, azuis, laranjas podem ser evocados tanto como quase florestas, rios, sóis quanto como tons que traduzem, como na música, leveza e gravidade, estio e tormenta.
Talvez esteja dada aqui uma pista para a indagação colocada no início deste texto. Se estamos, inequivocamente, diante de uma obra cuja dinâmica formal e cromática transpira uma eloquência barroca, de maneira simultânea, em seu caráter arredio a qualquer dimensão discursiva, na sua escolha por tudo insinuar e pouco mostrar, essa mesma obra conforma-se como um insuspeitado exercício de síntese. A exposição chama-se 5 pinturas, mas caso olhemos com atenção, o conjunto hoje reunido parece forjar um único e só movimento entrelaçado. Contrapondo-se a uma atualidade marcada pela ânsia por tudo exibir e narrar, Marina Perez Simão nos endereça uma cartografia que não entrega um ponto de chegada. Cabe a cada um de nós, através de uma imaginação novamente irrigada, completar o mapa das suas quase-paisagens.
—Luisa Duarte
[i] Sobre esse argumento, ver TÜRCKE, Christoph. Hiperativos: abaixo a cultura do déficit de atenção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016; TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
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Marina Perez Simão, Untitled, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled | Sem título, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled/ Sem título, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled/ Sem título, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled/ Sem título, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled, 2022
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Marina Perez Simão, Untitled, 2022