Nascimento Antonio Obá
Nascimento é a duração de um instante
O nascer nunca é um instante inaugural – aquela centelha que dispara a respiração pela primeira vez –, dissociar-se da matriz para vir à luz (às vezes, à escuridão) dos dias. É travessia, reinvenção. Talvez por isso, Nascimento tenha sido o título escolhido por Antonio Obá para acolher estas obras. Elas trazem a marca da autorreferência, com ênfase nas experiências humanas, que caracteriza seu trabalho e procuram sintetizar a sua admiração pela vida, pelas coisas do mundo.
Reconhece, porém, que atravessá-lo requer bravura. Inicia, assim, na companhia de Ogum, o senhor de toda guerra, e Iansã, a senhora dos movimentos, representados na vereda margeada por espadas-de-são-jorge e espadas-de-santa-bárbara. Uma vez cruzado esse portal, sucedem-se objetos elaborados com alguns materiais recorrentes em sua poíesis: os búzios, que materializam as trocas e um sistema de divinação; a cabeça, que na tradição do candomblé é uma escolha dos seres humanos; os pregos, em sinal de defesa ou proteção. Demarcam seus enfrentamentos por uma territorialidade política e espiritual.
Na pele de guerreiro, em Encantado, o artista aciona as chaves de um mesmo quadro de forças simbólicas presente em sua trajetória, e faz um retorno a obras performativas, estancadas desde 2017. No enredo, um homem adentra a natureza quase intocada e se transfigura no contato com os riscos e com as belezas que ela oferece. Carrega um cajado em forma de cruz – a encruzilhada que evoca seus pertencimentos. Suas inserções na natureza seguem na instalação Ka’a pora, expressão do tupi-guarani que remete à Caipora, protetora das florestas na mitologia dos povos originários do Brasil e ao caipira, habitante do mato. É preciso lembrar que Antonio é, ele mesmo, um homem do bioma Cerrado, no Centro-Oeste brasileiro.
Antonio não desperdiça nada que vicejar em seu caminho: flores, pássaros, árvores, mãos hábeis capazes de canalizar energias para fechar um corpo. As mãos do artista decolonizam os 22 arcanos do Tarot de Marselha. O “Louco” do baralho original é, agora, um Exu, elegantemente equilibrado sobre encruzilhadas. Obá converte arquétipos em mágica.
Há também o amanhecer, o anoitecer, a presença e os ensinamentos de sua avó. Tudo lhe vem aqui arrebatado pela paleta de cores, ora vigorosas nos pretos e vermelhos, ora amenas nas cores da natureza. São cenas singelas, sombras, um modo de zelar pelos seus, pela simplicidade, por seus gestos. As pinturas suscitam varreduras no cotidiano. Em todas elas, a sinuosidade das linhas parece querer avultar a passagem dos dias, das horas, dos tempos. Na série Sonambúlicas, um rito noturno e diário para abrandar o pensamento, descansar olhos e corpo exauridos da labuta, ele desenha livremente sugestionado pelos acontecimentos do dia.
Nascimento é também um gesto de esperança: sobreviver a guerras para renascer encantado, firmar o passo para aprofundar raízes, estar atento à cosmogonia, às memórias, à vida, com a generosidade dos grandes e a curiosidade de menino.
E, assim, cônscio do seu labor, este Nascimento de Antonio Obá é duração que articula a fragilidade dos começos – “tudo que brota” – com a força das continuidades – tudo “que vinga”. Nascer, para ele, é a pulsão de vida, em si. Tudo “que medra”.
– Denise Camargo
-
Antonio Obá, Situação terreiro: escança, 2025 -
Antonio Obá, Personagem cruzado: exercícios espirituais, 2025 -
Antonio Obá, Pequena fábula doméstica, 2025 -
Antonio Obá, Lumiar - Paisagem sertaneja, 2025 -
Antonio Obá, Auriga: ou o que aprendi caminhando com meus cães, 2025 -
Antonio Obá, Situação terreiro: estripulia, 2025 -
Antonio Obá, Avó: Expiação para uma prece doméstica, 2025 -
Antonio Obá, Situação terreiro: acese, 2025 -
Antonio Obá, Alma encantada da rua, 2025 -
Antonio Obá, A estrela #17, 2025 -
Antonio Obá, A força #11, 2025 -
Antonio Obá, A imperatriz #3, 2025 -
Antonio Obá, A justiça #8, 2025 -
Antonio Obá, A lua #18, 2025 -
Antonio Obá, A morte #13, 2025 -
Antonio Obá, A roda da fortuna #10, 2025 -
Antonio Obá, A torre da destruição #16, 2025 -
Antonio Obá, Julgamento #20, 2025 -
Antonio Obá, O carro #7, 2025 -
Antonio Obá, O diabo #15, 2025 -
Antonio Obá, O enamorado #6, 2025 -
Antonio Obá, O enforcado #12, 2025 -
Antonio Obá, O eremita #9, 2025 -
Antonio Obá, O imperador #4, 2025 -
Antonio Obá, O Louco #0, 2025 -
Antonio Obá, O mago #1, 2025 -
Antonio Obá, O mundo #21, 2025 -
Antonio Obá, O papa #5, 2025 -
Antonio Obá, O Sol #19, 2025 -
Antonio Obá, Papisa #2, 2025 -
Antonio Obá, Temperança #14, 2025 -
Antonio Obá, Figura adâmica: Wuso owoti a nea aka no ye ahoma, 2025 -
Antonio Obá, Ka’a pora, 2024 -
Antonio Obá, Encantado [Enchanted], 2024 -
Antonio Obá, Sonambúlicas #01, 2025 -
Antonio Obá, Sonambúlicas #04, 2025 -
Antonio Obá, Sonambúlicas #06, 2025 -
Antonio Obá, Sonambúlicas #07, 2025 -
Antonio Obá, Sonambúlicas #10, 2025 -
Antonio Obá, Sonambúlicas #21-22, 2025 -
Antonio Obá, Sonambúlicas #14, 2025
