The Hunger Sanam Khatibi

Apresentação

«Água sacode a chuva dos tetos 

A dos castelos de hera 

Era verde a água borbulhava. 

 

Foram os drapeados 

Talo antigo guarnições 

Corações ocultos das Melusinas 

Sob silenciosas florações 

 

Jamais estrela da tarde 

Mostrou o tão féerico 

Não era mais noite nem dia. 

 

Longo batente longua ala 

Horripilante.» 

 

Valentine Penrose, “Gilles de Rais”, em Les Magies, 1972. 

 

 

No início dos anos 60, a escritora, poeta e artista surrealista francesa Valentine Penrose, fascinada por assassinatos em série e personagens sanguinários da história, explora as biografias de Gilles de Rais e da condessa húngara Erzsébet Báthory. Ao mergulhar na alma obscura e possuída da condessa, ela investiga sua loucura e crueldade e revela o horror fascinante de seu destino. Inspirada nos escritos implacáveis de Valentine Penrose, a prática artística de Sanam Khatibi, que reúne pinturas, bordados, tapeçarias, esculturas, objetos e instalações, oscila entre a fascinação pela violência humana e pelo fúnebre, e a representação exuberante de uma natureza idílica de luz suave e vegetação luxuriante. Suas obras abordam os temas da animalidade e dos instintos primários, e nos conduz à fronteira tênue entre o medo e a atração, o caos e a sedução.  

 

A obra de Sanam Khatibi invoca antes de tudo uma arte do paradoxo, onde a dominação e a submissão, o controle e o abandono, se entrelaçam com fervor. Nela o poder, a violência e a sensualidade se misturam e se confundem, tecendo relatos imbricados onde se afrontam o humano e o animal, o instinto e a razão, a crueldade e o desejo. No cerne da sua prática artística existe uma exploração das dinâmicas de poder e da tensão entre o triunfo e o fracasso. Sua atração por aquilo que a aterroriza encontra-se encarnada na superfície de suas telas, através da representação de pequenas cobras que caracterizam inúmeras de suas obras, um réptil que lhe inspira fascínio e fobia. Seu interesse pelo paradoxo se manifesta igualmente em sua estética, e ela brinca com um tempo visual perturbador e hipnótico, no qual a composição fluida e os contrastes criam um ritmo que flutua entre tensão e leveza. As figuras animais e humanas que ela retrata estão frequentemente em plena metamorfose e reforçam essa dinâmica, conferindo às suas obras uma cadência orgânica e quase visceral. As telas de Sanam Khatibi são, enfim, compostas com um hábil vai e vem entre a representação de uma natureza imensa que nos abraça com seus galhos e os minúsculos objetos que se inserem em suas fendas - pequenos personagens de porcelana, crânios de marfim, dentes, insetos etc.  

 

As obras da artista parecem impregnadas da importância primordial que ela atribui aos objetos e a sua representação. Criada por uma mãe ávida colecionadora de antiguidades, ela herda, depois de sua morte, uma imensa coleção de objetos, principalmente porcelanas chinesas e japonesas. Essas últimas ganham vida em inúmeras de suas telas, operando uma forma de mise en abyme da memória pessoal e familiar dos objetos que lhe foram legados. Aqui, jarras naufragadas à beira do caminho, esvaziam-se de seus líquidos ou talvez de seu sangue, em um cenário diluviano. Visitar o ateliê de Sanam Khatibi, é como mergulhar em um verdadeiro gabinete de curiosidades onde convivem uma miscêlania de vasos, de falos da África Ocidental, de vaidades e de outros tesouros que ela mesmo recolheu. Esse duplo papel de artista e de colecionadora ganha sentido quando percebemos a importância do misticismo e da espiritualidade que atravessa toda a obra da artista, ela que parece acreditar no precioso poder simbólico dos objetos e na força ritualística que eles inspiram. Uma série de pinturas de pequeno formato que retratam cigarreiras chinesas em forma de frascos esculpidos é assim intitulada «amuletos», formando um conjunto de oferendas, enquanto que os objetos em miniatura que evocamos anteriormente parecem formar um corpus protetor contra a sorte.  

 

As naturezas mortas apresentadas na exposição refletem o mito da natureza destruidora. Nela papoulas gigantes reinam em vasos de dupla face, humana e craniana, sugerindo a dualidade entre a vida e a morte. A fauna animal sempre exerce um papel primordial nas composições de Sanam Khatibi, e é frequentemente retratada ao lado de figuras humanas. Nessas naturezas mortas, os pássaros, íbis ou pássaros-serpentes, rondam perto dos vasos, e nos lembram o interesse da artista pelos pássaros e animais predadores, ela que também seguiu uma formação de falcoeira. A estética da arte japonesa desempenha ademais um papel significativo no trabalho de Sanam Khatibi, que cria uma superfície brilhante inspirada na laca japonesa, ou shikki, um artesanato de artes decorativas que adorna igualmente as estampas, os budas e as caixas de bento. A evocação da pintura renascentista e de seus claros-escuros é realçada por uma paleta de tons escuros e dramáticos:  aqui o púrpura rosado da terra e do céu se funde com o verde garrafa das folhagens, ali o marrom da mesa torna-se um preto brilhante.   

 

A sensação de dança macabra que paira sobre as pinturas de Sanam Khatibi nos lembra que a morte é indissociável da vida e que, se o mundo é vulnerável, o que somos e o que possuímos ainda habitam nossos dias e às vezes até os atravessam para além de nós.    

 

– Martha Kirszenbaum