Um galo sozinho não tece uma manhã Guglielmo Castelli
Guglielmo Castelli: A pintura como revolução
Entretanto, as pinturas que vemos não transmitem mensagens políticas explícitas, tampouco oferecem uma representação narrativa destas. Em vez disso, corpos contorcidos e fragmentados, membros, máscaras, flora e fauna são lindamente pintados em camadas de óleo sobre papel, tela ou sobre objetos encontrados, como pandeiros. A pintura é habilmente aplicada em camadas, de modo que a carne, as transparências, a escuridão e a luz, criam atmosferas sedutoras, quase góticas, onde o horror tem importante papel nos processos de recuperação, renegociação e reimaginação - pense nas atmosferas evocadas em romances góticos como Frankenstein, de Mary Shelley, Drácula, de Bram Stoker, ou O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, textos conhecidos por captar a necessidade de reconexão com o visceral, em tempos de profundo conservadorismo. O horror, na literatura e na pintura, é um regime visual metafórico por meio do qual o político e o social podem ser explorados.
Muitos leem a figuração de Castelli como sendo onírica e tributária do surrealismo. Sem dúvida, Castelli é conhecedor profundo dos cânones da arte ocidental, sobretudo das vanguardas europeias do século XX, incluindo-se nisso o surrealismo - endêmico à educação burguesa, da qual ele zomba autodepreciativamente, buscando, sistematicamente, questioná-la e reformá-la. No entanto, a meu ver, essa interpretação é equivocada quando se consideram as premissas por trás das estruturas conceituais de Castelli e seu processo geral, que se afastam da abstração e das considerações sobre a relação entre forma e substância - entre as referências do artista, está a coleção de poemas de Hermann Broch de 1913-1949 intitulada Truth Only in Form (La verità solo nella forma. Poesie 1913-1949, Milão: De Piante, 2021).
As formas, as cores e as composições de Castelli são uma consequência direta de sua substância. Vice-versa, o rigor formal de suas obras é endêmico ao seu conteúdo. A preocupação com o equilíbrio entre forma e substância, ou forma e tema, tem sido fundamental para o trabalho de artistas amparados na abstração geométrica, ao longo do século XX. Enquanto os abstracionistas, como os cubistas, buscavam a abstração da forma para obter um novo vocabulário estético, outros, como os concretistas, buscavam na pureza da própria forma a oportunidade de expressar o inerente, tudo o que não pode ser confinado pela figura. De muitas maneiras, extraindo e mesclando diversas tendências abstratas, Castelli faz suas pinturas primeiro pingando tinta na tela crua, aplicando-a sem uma ideia preconcebida de como será o trabalho final. Ao avaliar os buracos, gradientes e sombras que aparecem na superfície, Castelli traça ou descobre geometrias de espaço, figuras e formas - uma espécie de pareidolia (ver formas ou padrões em formas abstratas, como nuvens ou qualquer coisa), que ele descreveu materialmente como “liquefação e emergência”. Trata-se de uma prática de desenho expansiva, crucial no desenvolvimento de elementos figurativos, que consiste em preencher cadernos com anotações e citações, como um estudo preparatório para as pinturas e trabalhos em grande escala sobre papel.
O artista optou por intitular essa primeira exposição, na galeria da Mendes Wood DM, em São Paulo, com o verso poético do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto: Um galo sozinho não tece uma manhã. O poema é uma ode à multidão, à solidariedade e à colaboração. Ele apareceu pela primeira vez na coletânea A educação pela pedra. Essa coletânea foi publicada em 1966, quando o Brasil estava sob o governo de uma ditadura militar que, nos anos seguintes, reprimiria artistas e intelectuais com violência. A metáfora de que o galo só é capaz de tecer o brilho da manhã se acompanhado por vários outros, ressoa tanto naquela época quanto hoje. Além disso, não parece coincidência que o poema de Cabral de Melo Neto pareça reproduzir o conceito central da psicologia da Gestalt - a base teórica de muitos artistas que trabalhavam com abstração geométrica no Brasil, nas décadas de 1950 e 1960: o “todo” (de um sistema, um objeto ou uma experiência) é mais do que a soma de suas partes; em outras palavras, o efeito de vários elementos juntos é maior do que a soma de cada parte tomada sozinha.
Com base nesse princípio fundamental, muitas das vanguardas brasileiras (concretistas e neoconcretistas) construíram suas práticas, muitas vezes baseadas na espacialização da forma, que Castelli também aborda, pela primeira vez, nesta exposição. Embora absolutamente em sintonia com sua pesquisa e prática de longa data, Castelli expandiu os perímetros de sua pesquisa ao romper a quarta dimensão e criar uma instalação imersiva ou um cenário para a exibição de suas obras. Sua intervenção arquitetônica altera a percepção do espectador sobre a galeria quando este é levado a caminhar sobre uma plataforma elevada que o conduz a três obras de grande escala. Há uma sensação de vertigem ao ser elevado acima do solo, que é a mesma sensação evocada nas obras em que Castelli usa perspectivas caleidoscópicas para oferecer um ponto de vista alternativo. Os desenhos que cobrem o piso, abaixo das plataformas, tornam o espectador também ciente de sua corporeidade em relação à obra.
Pelo menos três obras que Castelli fez para esta exposição, em resposta à sua primeira visita ao Brasil, distinguem-se por uma paleta quente em tons de laranja, vermelho e amarelo. A tela Pan de Queijo (2024) é uma espécie de autorretrato que representa uma forma de desorientação. A figura central se encontra em uma paisagem urbana; a arquitetura é indistintamente europeia ou colonial, embora sua perspectiva seja distorcida. É como se o questionamento sistemático de Castelli sobre sua própria herança ressurgisse em uma chave diferente ao ter que confrontar a questão da colonialidade em um país como o Brasil (interessante também é o erro de ortografia deliberadamente mantido no título “pan de queijo” em vez de “pão de queijo”). A tela parece perguntar: como um olhar moldado pelos cânones e convenções europeus se transforma diante de um contexto pós-colonial? Como um artista europeu pode fazer um trabalho que aborde e reforme a cultura europeia no Brasil? Como a diferença de perspectiva pode ser levada em conta?
A tela Moleque (2024) é uma homenagem ao artista ítalo-brasileiro Alfredo Volpi, que emigrou ainda criança de Lucca para São Paulo, em 1898. Celebrado como um pioneiro do modernismo brasileiro durante sua vida e atualmente, Volpi imaginou um modernismo no Brasil desvinculado do europeu. Ele encontrou seu léxico visual no Brasil do povo, principalmente por meio da pintura icônica das bandeirinhas decorativas, usadas em festas e metonímicas da cultura popular brasileira em geral. As Bandeirinhas de Volpi ocupam o primeiro plano e frequentemente preenchem a tela – simbolicamente, o popular está na vanguarda do moderno no Brasil. Em contraste, Castelli as espalha em torno de duas figuras principais, que podem estar contidas na gíria titular moleque – o(s) garoto(s) brincando na rua. Ao lado deles, dois cachorros brigando e um galo aparecem, consolidando a sensação de uma cena rural, semelhante àquela que Volpi teria procurado capturar. No entanto, no trabalho de Castelli, o imaginário popular é expresso em tensão com uma estética que muito ainda carrega do treinamento formal de Castelli e de seu conhecimento da arte europeia. Nessa obra, as bandeirinhas se tornam um dispositivo reproduzível, muito parecido com uma grade – o dispositivo onipresente do modernismo canônico, que vemos descansar no fundo de outra obra Oh after, after (2024). Assim, Castelli emprega a bandeirinha como a revelação do modernismo, mas dessa vez de um modernismo voltado para o popular.
O pensamento em torno do popular surge também na escolha de Castelli de exibir pandeiros de couro antigos, nos quais ele pintou cenas em miniatura. Os pandeiros são instrumentos amplamente usados na música popular internacional e, na Itália são essenciais para a canzone napoletana, uma expressão central da música popular de Nápoles. Meia-dia (2024) mostra uma cena rural de vegetação exuberante e colinas ondulantes na paleta brasileira de Castelli, com três figuras segurando redes de borboletas. A atividade de caçar borboletas parece incongruente com o calor transmitido pela paleta, o que é confirmado pelo título (mais uma vez o meio-dia escrito incorretamente), com o traje casual dos três e, de modo geral, em desacordo com as representações frequentes dessa atividade mundana e de lazer, realizada por homens e mulheres, na virada do século XX. O segundo tamborim, Meia-noite (2024), retorna à paleta mais escura, familiar à obra mais ampla de Castelli. Essa obra apresenta uma única figura desarticulada deitada sobre uma escada, com projeções fantasmagóricas ao seu redor. O diálogo entre Meia-noite e Meia-dia sustenta algumas das incongruências ou fraturas que Castelli explora em sua própria herança, na busca permanente pela relação entre substância e forma.