Matutar Marcos Siqueira

Apresentação

Matutar: refletir, pensar, desejar cuidar 

Esse escrito começa na verdade há um ano atrás, quando tive a oportunidade de passar alguns dias na Serra do Cipó, junto com Marcos Siqueira. Naquela oportunidade, saímos eu e ele em uma tarde pra caminhar pela Serra. Talvez quem lê esse texto agora, não saiba como esse pedaço do Estado de Minas Gerais, no Brasil, é impactante. Diante dele estamos sempre lidando com uma enorme escala. As Montanhas, a vegetação, tudo convida a um olhar que apreende o monumental. No entanto, naquela caminhada, algo de outra ordem aconteceu. Marcos é um dos maiores  conhecedores daquela região e da natureza de lá. Desde a mais  tenra idade, é naquelas montanhas que os dias e os anos foram vividos. Vividos das mais diferentes formas: como o menino que desde cedo trabalhava junto com a família na terra, o homem que atua como brigadista de incêndio, quando adentra o espaço para iniciar uma luta com o fogo que toma aquela parte do Brasil durante alguns períodos do ano, quase sempre por ações  humanas. 

Pois bem, foi com esse Marcos Siqueira, que aprendi algo inesperado naquela caminhada. A medida que andávamos, ele me chamava para sair do imenso e voltar meu olhar para pequenos detalhes: a planta que se fecha ao toque da mão, a outra que tem a textura da pelúcia e que ele chama  de “orelha de coelho e as diferentes qualidades de solo que fomos encontrando. Detalhes que só são apreendidos quando o olhar se estende, se demora em pequeníssimas vidas que podem não se entregar se não tivermos uma qualidade especial de atenção.

Começo esse texto evocando essa experiência pois depois dela, um outro olho foi produzido para encontrar suas pinturas, ainda naqueles dias, em sua casa  atelier.

Ali, com uma organização típica do tempo de Marcos Siqueira, pude conhecer seus pigmentos, a madeira que é suporte de seu trabalho, o seu processo de produzir essas pinturas que não são outra coisa que um ato acurado de delicadeza que chega aos trabalhos a partir de uma busca pelas pequenezas  do mundo.

Dessa mistura entre os diferentes tipos de solo da Serra do Cipó, cola acrílica e agua, vai surgindo o cromatismo ocre de suas pinturas. Cores que nascem no  solo que avança sobre a Serra do cipó e que é cuidadosamente  recolhido, peneirado e preparado. Em um tempo onde os debates sobre arte e natureza e antropoceno ganham mais  e mais espaço nos debates sobre arte,  não é possível contornar o significado novo que o processo desse artista propõem. 

Suas imagens que se erguem em ambiente que flerta com o onírico, não são ilustrações da paisagem. Tão pouco são elas feitas de grandes e enormes tratados sobre a vida em um mundo que convalesce e responde com cidades que submergem, temperaturas que sobem, geleiras que se partem. Não, não é por esse caminho que o trabalho desse artista encena outras vias pra pensar essa relação. 

A natureza onde  surgem esses personagens,   que por vezes estão em estado de solitude diante da natureza, é resultado do  processo de um artista que demora seu olhar no cotidiano da paisagem. Somos chamados por aquilo que resulta do “matutar” o mundo. Esse termo que dá título à exposiçãoe foi uma escolha do próprio artista.

No Brasil, matutar significa se retirar do imediato para poder se dedicar a um tempo mais distendido para pensar. Essa expressão aparece em frases como: “eu estou matutando”, “deixa eu matutar antes de responder”. Ou seja, é o pedido para se retirar da velocidade vertiginosa que compõe um mundo feito de imediatismos, para ganhar o direito de se deter no tempo, antes de uma decisão.

Essa talvez seja uma das  chaves primeiras para entrar  em contato com esse conjunto de pinturas. Nada nas pinturas dessa exposição remete a imediatismos, espontaneísmos ou ingenuidades, que tantas vezes são evocadas para posicionar artistas negros que vem de camadas menos abastadas da sociedade brasileira. Aqui é importante estarmos alertas para o fato de que  essa exposição acontece nos Estados Unidos, onde termos como primitivo, ingênuo, popular  e espontâneo são recorrentemente utilizados para encapsular a produção afro-brasileira, em uma pretensa busca de uma tal “autenticidade”.

Perceba: matutar o mundo, que reaparece nessas pinturas,  significa por em movimento um sofisticado pensamento não “sobre” a natureza mas com a natureza. Não há ingenuidade nesse processo, há sim um conhecimento sobre arte e mundo que se realiza sobre o suporte. 

Perceba as soluções formais que são conduzidas nesses trabalhos. Em muitos casos, o artista  produz  o espaço pictórico a partir de faixas de cor, que alteram a relação entre figura e fundo, horizonte  e linhas de sustentação. Em outros casos, formas de uma geometria orgânica ganham o protagonismo. Quando perguntei ao artista sobre essas geometrias, ele me diz: “basta prestar atenção nos encaixes que se encontra nas paisagens. As cores surgem pelo encontro de diferentes tipos de solos feitos pigmentos. Aqui, forma e conteúdo são indissociáveis.  

Em muitos  desses trabalhos vemos ocupando a tela a figura do que parece ser um menino, que por vezes se equilibra sobre um tênue linha, carrega uma bola, lança balões ao céu. Entre tanto que  essas representações nos convocam, há de se estar atento para o silêncio que envolve as figuras. Não  são trabalhos que permitem um olhar de relance. Assim como acontece no aprendizado dos  detalhes da paisagem é preciso que se saia do todo que nos chega de imediato.

Há uma conexão que me chega de maneira muito forte ao ver essas figuras, que na maioria das vezes, estão solitárias em ambientes como estes. Na relação entre arte, natureza e presença humana, impossível não pensar nas pinturas de Caspar David Friedrich, em especial a mais conhecida delas: "Wanderer above the Sea of Fog", de 1818. Nela, a figura de um homem de costas mira o nevoeiro sobre uma cadeia de montanhas que se estende até o último plano da tela. A pintura evoca a noção da natureza como esse lugar que abisma e desafia o humano. Esse homem, de costas se abisma diante de um mundo que ele apenas observa.  Ali está natureza selvagem a ser dominada pelo conhecimento racional. Os resultados dessa compreensão temos visto todo os dias.Aqui, dois séculos depois, temos a urgência de criar  outra forma de lidar com o mundo. Matutar o mundo.

Se a arte vai tomar parte nisso, a poética de Marcos Siqueira é parada incontornável.

- Igor Simões

Obras
Vistas da exposição