Avec Lucas Arruda, Sanam Khatibi, Patricia Leite, Paula Siebra, Marcos Siqueira, Erika Verzutti et Castiel Vitorino Amadeo Luciano Lorenzato En Conversation

Apresentação

Mendes Wood DM tem o prazer de apresentar Amadeo Luciano Lorenzato En Conversation, uma exposição coletiva em Paris que reúne obras de Amadeo Luciano Lorenzato ao lado dos artistas contemporâneos Lucas Arruda, Sanam Khatibi, Patricia Leite, Paula Siebra, Marcos Siqueira, Erika Verzutti e Castiel Vitorino Brasileiro. 

Lorenzato, pinta como quer

Amadeo Luciano Lorenzato pintava o que via ao seu redor. Por mais de dois terços de sua longa vida, viveu em Belo Horizonte, perto do local onde nasceu em 1900, de pais imigrantes italianos. Ele fazia caminhadas pelos arredores da cidade, esboçando as paisagens, a luz, o mundo natural, os ambientes urbanos e industriais em transformação, as arquiteturas vernaculares e a vida nas favelas. Seus trabalhos, baseados em suas memórias de coisas vistas e esboçadas, por um lado, destilam observações aguçadas de uma experiência social urbana específica, por outro, são frutos de uma constante experimentação com forma, cor, uso da tinta, padrão e composição. Estrelas se fundem com postes de luz, trilhas são feitas por lesmas, pássaros e aviões formam labirintos densos com linhas sinuosas, a fumaça das chaminés se transforma em brilhantes nuvens simbolistas, arranjos de natureza-morta se espalham pela superfície da tela como composições cubistas e paisagens e folhagens tendem à abstração. Artesanal em sua abordagem, ele confeccionava seus suportes à mão, usando principalmente madeira e tábuas. Suas tintas eram produzidas com pigmentos locais de pó Xadrez à base de óxido de ferro. Uma técnica singular de trabalhar a superfície da tinta com um pente permitia ao artista criar variações de cor e estriações no impasto, inspirada pelo que havia aprendido em seu primeiro ofício como pintor decorativo, que executava acabamentos em mármore ou madeira. Com pentes e outros implementos, ele alcançou texturas que sugerem paredes ásperas, efeitos de luz sobre campos ou encostas rochosas e nuvens de chuva se acumulando em um céu branco e plano. Lorenzato pintava constantemente, com um entusiasmo inabalável, e foi prolífico; estima-se que tenha produzido entre 3 mil e 5 mil pinturas, embora muitas obras não tenham sido documentadas. Em 1948, quando voltou ao Brasil após passar quase 30 anos na Itália, escreveu no verso de uma pintura de borboletas em seu jardim: “Pintor autodidata e franco atirador, nao [sic] tem escola, nao [sic] segue tendências, nao [sic] pertence a igrejinhas, pinto conforme le da [sic] na telha.” Lorenzato, pinta como quer.[i]

Sem se encaixar em moldes estabelecidos—como “modernismo” ou “primitivismo”—a grande liberdade estilística e a incessante experimentação de Lorenzato fazem com que ele permaneça incategorizável. O poder de sua linguagem artística é inegável e, em sua expressão pictórica vibrante e despojada, que busca ir ao cerne das coisas, há uma complexidade de reflexão, além de uma grande riqueza de referências. A celebração da cor, a busca por novas técnicas e a quebra com convenções artísticas mostram que ele estava em sintonia com seu tempo, absorvendo o que via ao redor, tanto visualmente quanto em termos de ideias, e utilizando essas influências de maneiras inovadoras, com a liberdade de combinar elementos geralmente díspares. Seu trabalho atravessa polaridades—abstração/figuração, superior/inferior, velho/novo, erudito/popular, centro/periferia. 

Em entrevistas, ele citava a pintura renascentista italiana como uma fonte importante de referência, mencionando Masaccio, Cimabue, Michelangelo e Leonardo da Vinci, além de expressar grande admiração pela arquitetura de igrejas e seus afrescos. Em outras ocasiões, referia-se com admiração a pintores do final do século XIX e do início do século XX (Cézanne, Courbet, Van Gogh, Monet, Manet).[ii] Em seu trabalho, vemos o estudo do volume e da paisagem de Cézanne, o impasto de Van Gogh e a luz dos impressionistas. A apreciação de Matisse pela cor e pelos motivos decorativos também é uma referência significativa. Ele se considerava autodidata, embora tenha frequentado algumas aulas aos 25 anos, durante o período em que esteve na Europa, de 1929 a 1949. Morou principalmente na Itália, mas também viajou e trabalhou por nove meses em Paris, na construção da Exposição Colonial Internacional de 1931. É certo que ele tinha um bom conhecimento da história da arte europeia, mantendo sempre por perto uma cópia muito folheada e sublinhada de Vasari.[iii] No entanto, esteve sempre distante do mainstream artístico. Lorenzato foi verdadeiramente contemporâneo, no sentido descrito pelo filósofo Giorgio Agamben em seu celebrado ensaio “O que é o contemporâneo?”, de 2008: “A contemporaneidade, portanto, é uma relação singular com o próprio tempo, que adere a ele e, ao mesmo tempo, toma distância dele”.[iv] Agamben sugere que é a desconexão e o descompasso que caracterizam aqueles que são verdadeiramente contemporâneos, pois percebem e compreendem seu próprio tempo exatamente por não se ajustarem às suas demandas e não coincidirem com seu contorno.

O historiador da arte Rodrigo Moura destaca que o núcleo principal da obra de Lorenzato, realizada em Belo Horizonte durante um período de rápida transformação urbana e de industrialização, a partir da década de 1950, retrata, em formas ousadas e cores vibrantes, a “modernidade periférica da cidade, construída sobre as bases da injustiça social e da urbanização não planejada”.[v] Esse também foi o período da ascensão do modernismo como a principal referência nas instituições de arte brasileiras. Como artista da classe trabalhadora, Lorenzato era considerado comum demais para as elites culturais e econômicas ou então era visto como um pintor “primitivo”. Ele começou a pintar em tempo integral após um acidente de trabalho em 1956 e, em 1964, teve sua primeira exposição no Minas Tennis Club. Moura especula que a emergente cena artística de Belo Horizonte categorizou sua obra como naif para, dessa forma, criar uma versão local do estereótipo dos conhecedores modernos que “descobrem” e apreciam o valor estético do “primitivo”.[vi] Posteriormente, ele seria visto como erudito demais para um artista naif e não foi incluído em exposições panorâmicas que mobilizavam as categorias de arte popular, naif ou primitiva. Na década de 1970, ganhou notoriedade entre artistas da contracultura de Belo Horizonte e continuou a conquistar a admiração de um círculo mais amplo de artistas nas décadas seguintes, incluindo aqueles cujas obras foram colocadas em diálogo com a sua nesta exposição. 

A artista Patricia Leite (nascida em 1955), assim como Lorenzato, transita entre a figuração e a abstração em suas pinturas de paisagens e naturezas-mortas. Sua obra em exibição, Festa no jardim (2023), explora a qualidade gráfica da folhagem na superfície côncava de um prato. Erika Verzutti (nascida em 1971) é conhecida pela cor e textura singulares de suas esculturas e pinturas que também borram as linhas entre abstração e figuração. Seu bronze pintado Rainy Night / Nuit Pluvieuse (2024) ressoa, em particular, as superfícies texturizadas de Lorenzato. É na renderização sublime da luz e das linhas do horizonte, entre a terra e o céu nublado—movendo-se em direção à abstração—, que as pinturas de Lucas Arruda (nascido em 1983) dialogam com as de Lorenzato. Já Marcos Siqueira (nascido em 1989) pinta paisagens mineiras com pigmentos naturais, organizando cores e linhas de maneira lúdica para evocar momentos cotidianos na tela, como fez Lorenzato em seu tempo. Uma geração mais jovem de artistas brasileiros, com menos de trinta anos e trabalhando com pintura e outros meios, também descobriu seu trabalho, incluindo Castiel Vitorino Brasileiro (nascida em 1996) e Paula Siebra (nascida em 1998). Fora do contexto brasileiro, a obra de Lorenzato é igualmente apreciada por artistas como a parisiense Sanam Khatibi, que aborda a natureza e a paisagem levando em conta uma série de outras questões.

Desde a morte de Lorenzato, em 1995, aconteceram mudanças significativas no posicionamento da arte moderna e contemporânea em relação a outras práticas, geografias e histórias. A ideia de história da arte como uma progressão de desenvolvimentos conceituais vinculados ao modernismo europeu e norte-americano foi amplamente superada. Hoje, vemos formulações mais complexas das especificidades e convergências entre práticas e heranças estéticas—histórias da arte, no plural—, bem como uma compreensão cada vez maior dos múltiplos contextos geográficos, estéticos, psicológicos e políticos da criação artística. Esse questionamento de diferentes histórias e categorias estéticas deve continuar a se expandir, notadamente por meio de um novo olhar sobre práticas artísticas singulares, como é o caso do trabalho de Lorenzato.

– Kathryn Weir*

 

* A prática curatorial e de escrita de Kathryn Weir envolve o pensamento crítico sobre tecnologia, classe, raça, gênero e ecologia política, concentrando-se nas interseções entre teoria, ativismo e experimentação artística no âmbito das geografias e histórias expandidas da arte contemporânea. Recentemente, foi codiretora artística da Bienal de Lagos 2021-2024, tendo anteriormente dirigido o museu MADRE em Nápoles (2020-23) e os programas multidisciplinares do Centre Pompidou (2014-20), onde criou Cosmopolis, uma plataforma para práticas colaborativas, socialmente engajadas e baseadas em pesquisa. De 2006 a 2014, foi diretora de arte internacional na Queensland Art Gallery | Gallery of Modern Art (QAGOMA), Brisbane, e membro da curadoria das,eTrienais da Ásia-Pacífico. Seus projetos atuais e recentes incluem Clément Cogitore: Ferdinandea (em 2025 no Mucem, Marselha), Lagos Biennial 2024: refuge, And what if Carthage ...? Nidhal Chamekh (Túnis, 2024), Green Snake: women-centred ecologies (Hong Kong, 2023-2024), Jimmie Durham: humanity is not a completed project (Nápoles, 2022-2023), Beauty and Terror: sites of colonialism and fascism (Nápoles, 2022), Claire Tabouret: I am spacious, singing flesh (Evento colateral, 59ª Exposição Internacional de Arte - La Biennale di Venezia 2022), Rethinking Nature (Nápoles, 2021-2022),Temitayo Ogunbiyi: you will play in the everyday, running (Nápoles, 2020-2021), Utopia Dystopia: the myth of progress seen from the south (Nápoles, 2021-2022), Collective Body (Dhaka Art Summit, 2020) e Cosmopolis #2: rethinking the human (Paris, 2019). 

As publicações incluem Beauty and Terror: sites of colonialism and fascism (2024), Rethinking Nature (2024), Utopia Dystopia: the myth of progress seen from the south (2023), Clément Cogitore: Ferdinandea (2023), Claire Tabouret: I am spacious, singing flesh (Mousse, 2022), Cosmopolis #1.5: enlarged intelligence (Centre Pompidou/ Mao Jihong Arts Fondation, 2018), Gorilla (Reaktion Books, 2013), Sculpture is Everything (QAGOMA, 2012), The view from elsewhere (Sherman Contemporary Art Foundation, 2009) e Modern Ruin (QAGOMA, 2008). 


[i] A inscrição completa encontra-se no verso da pintura Sem Título (1948), citada em MOURA, Rodrigo.  Lorenzato. KMEC Books, Ubu Editoria: Nova York, São Paulo, 2023, p. 15. A autora agradece a Rodrigo Moura pela sua importante pesquisa sobre o artista, na qual este ensaio se baseia.

[ii] MOURA, Rodrigo. Lorenzato, KMEC Books, Ubu Editoria: New York, São Paulo, 2023, p.83.

[iii] VASARI, Giorgio. Le vite de' più eccellenti pittori, scultori, e architettori, Florença, 1568.

[iv] AGAMBEM, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Editora Argos: Chapecó, 2009, p .59. 

[v] MOURA, Rodrigo.  Lorenzato. KMEC Books, Ubu Editoria: Nova York, São Paulo, 2023, p.21.

[vi] MOURA, Rodrigo.  Lorenzato. KMEC Books, Ubu Editoria: Nova York, São Paulo, 2023, p.27

Obras
Vistas da exposição