Rumors Ebecho Muslimova
Como um telefone sem fio,
um jogo de confiança e erro,
um romance à longa distância.
Rumors and Whispers (Rumores e Sussurros) é uma exposição dividida em duas partes, destacando a recente série de pinturas de Ebecho Muslimova. Apresentada inicialmente com a série Rumors na galeria Mendes Wood DM em São Paulo, e seguida, duas semanas depois, por Whispers, na Bernheim Gallery em Zurique. Numa espécie de brincadeira de telefone sem fio transatlântica, em que cada obra responde a uma proposição da exposição anterior, este conjunto acompanha a transformação da personagem emblemática de Muslimova, Fatebe. Com uma personalidade extremamente curiosa e desinibida, a personagem surge em diferentes formas em todas as pinturas, às vezes de maneira travessa, e em outros momentos incorporando fisicamente um portal entre elas, em resposta à provocação de uma pintura anterior. De um palco a um boudoir, de um parque a uma galeria, do horizonte de Nova York a uma paisagem imaginada, esses espaços aparentemente díspares servem como o playground onde ela explora a interação entre psique e ambiente, refletindo sobre o processo de criação artística.
Muslimova começou a experimentar com Fatebe quando era estudante na Cooper Union, em Nova York, como uma forma de superar a experiência, muitas vezes frustrante e confusa, de estar na escola de artes. Originalmente criada como um desenho flatline, inteiramente em preto e branco, a personagem floresceu nas situações em que a artista a colocou: contorcendo seu corpo em formas impossíveis, desenvolvendo úberes de vaca e ordenhando-se, aparecendo como uma mágica extraindo uma quantidade aparentemente infinita de outras Fatebes de sua vagina, ou abrindo-se e filmando uma escada infinita em espiral perfurando seu corpo. Ainda que muito tenha sido escrito sobre a leitura de gênero da protagonista da artista e o que a personagem poderia significar para a sexualidade e a imagem corporal das mulheres, o que persiste ao longo de mais de dez anos da personagem é uma fome infantil de exploração corporal e psíquica. Fatebe funciona como um alter ego de Muslimova, uma identidade caricatural para a artista visualizar emoções e desejos. No entanto, a personagem também personifica o ato de pintar. Se uma pintura tivesse corpo, que formas assumiria? Como se relacionaria com a cor, a forma e a história? Quantas manifestações poderia tomar em uma única obra?
Fatebe Fenced Pigs (todas as obras de 2024) apresenta um bacanal ao estilo de Goya, com a personagem desenhada deitada de costas na grama brilhante, consumindo porquinhos rosados cartunescos que ela expele pela vagina e pelo ânus. Em Fatebe Farm Mother, a obra pareada em Zurique, os leitões voadores estão quase todos mortos, transformando-se de suas formas alegres cartunescas em esqueletos pintados de maneira mais realista, uma comédia sombria sobre a passagem do tempo. Em Fatebe Clown Boudoir, testemunhamos um espaço mais íntimo, no qual uma pequena Fatebe palhaça-espermatozoide olha para um espelho que sai da vagina de outra Fatebe, refletindo um vaso decorativo que Muslimova viu no Metropolitan Museum of Art em Nova York. Dentro de um cenário imaginado, a artista pinta realisticamente o banquinho de seu estúdio, situando-se dentro da pintura e da paisagem de Nova York, cidade onde a artista – embora tenha nascido na Rússia – cresceu e trabalha. Ainda que a personagem exista majoritariamente sozinha em seu universo, a arquitetura sempre funcionou como uma personagem secundária, ora forçando-a a se contrair, ora cedendo sob sua expansão. A arquitetura, seja referenciando lugares reais, sonhos ou cenários infernais imaginados, define o palco para Fatebe’s game.
Em Twenty Minutes in Manhattan (2009), Michael Sorkin, falecido teórico da arquitetura, narrou, por meio da experiência de sua caminhada diária da porta de sua casa no West Village até seu escritório em Tribeca, uma história pessoal da arquitetura e do plano urbano de Nova York, refletindo sobre a cidade como um organismo em constante mudança. Nesta exposição, a jornada de Muslimova através da pintura segue um formato semelhante: a personagem conduz o espectador por várias técnicas em um processo diário com uma década de duração, atravessando paisagens e cruzando oceanos dentro da mesma narrativa expositiva. No espaço entre Fatebe Harvest e Fatebe Farm to Table, Fatebe metamorfoseia-se: de personagem cartunesca e suporte estrutural de uma viga de arranha-céu que também funciona como mesa para uma forma cremosa pintada de maneira exuberante, que é então penetrada pelo suporte estrutural, até finalmente dissipar-se nos destroços em decomposição de uma horta urbana, com ratos e tudo mais. A personagem está inerentemente ligada à arquitetura de seu ambiente, sustentando-a e sendo despedaçada por ela.
Sorkin argumenta que “a cidade moderna produz seu próprio estilo de deriva, enraizado em sua forma especial de alienação. Aqui, a multidão é um meio de apagar a individualidade e homogeneizar a experiência, fazendo-nos desaparecer, embora também possa ser protetora.” No contexto da cidade, Fatebe emerge como uma imagem representativa da psique de uma geração que atingiu a maioridade em torno do 11 de setembro e cresceu durante o aumento da vigilância, a digitalização do eu, a proliferação de avatares online e as infinitas oportunidades de conectividade através da tecnologia. Diante da ansiedade em relação à vida urbana, Fatebe’s world é um sonho de ketamina, uma paisagem em tecnicolor onde se pode escapar do caos da multidão e se dissociar na paisagem: derreter na piscina do subconsciente (Fatebe Toad Self), transbordar em uma montanha de lixo (Fatebe Kettle Vision e Fatebe 4 Corners), ou extravasar os limites do quadro com água (Fatebe Wet Veil).
No Brasil, Fatebe vai além da zona da pintura e se impõe na arquitetura das paredes da galeria através de uma série de murais e desenhos. Essas manifestações da personagem acrescentam uma camada extra ao jogo de sussurros e oferecem à personagem mais controle. Embora ela tenha se adaptado e florescido nas posições muitas vezes comprometedoras, histéricas e às vezes abjetas em que Muslimova a pinta, aqui Fatebe altera a narrativa, movimentando-se entre as obras em ambas as galerias. Agora todos nós podemos cair sob o encanto de seu charme cartunesco.
— Samantha Ozer
Ebecho Muslimova (n.1984, Dagestan) vive e trabalha entre a Cidade do México e Nova York.
Muslimova recebeu seu Bacharelado em Belas Artes na Cooper Union, em Nova York, em 2010. Teve exposições individuais na Magenta Plains, em Nova York; no The Drawing Center, em Nova York; na David Zwirner, em Londres; na Galerie Maria Bernheim, em Zurique; na White Flag Projects, em St. Louis; e na Room East, em Nova York.
Seu trabalho foi incluído em exposições coletivas no Kunstmuseum Basel, em Basel; noICA Miami; na The Renaissance Society, em Chicago; no Zuzeum, em Riga; no Hirshhorn Museum, em Washington, D.C.; no Swiss Institute, em Nova York; e no Kunst Halle Sankt Gallen. Seus murais em grande escala foram comissionados para bienais, como The Dreamers, 58ª edição do October Salon, em Belgrado, e 32ª Bienal de Artes Gráficas: Birth as Criterion, em Ljubljana. Em 2022, Muslimova recebeu o Prêmio Borlem, que homenageia artistas cujas obras tratam de questões e lutas relacionadas à saúde mental. Seu trabalho foi apresentado em publicações como Forbes, The New York Times, Artforum, Art in America, Mousse, Artnet, Hyperallergic, Cura, entre outras. Muslimova está incluída no livro de Jeffrey Deitch, Unrealism, que traz 27 artistas e ensaios importantes de Johanna Fateman, Alison Gingeras e Aria Dean.
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Ebecho Muslimova, FATEBE WORM TO WORM, 2024
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Ebecho Muslimova, FATEBE WET VEIL, 2024
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Ebecho Muslimova, FATEBE CLOWN BOUDOIR, 2024
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Ebecho Muslimova, FATEBE 4 CORNERS, 2024
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Ebecho Muslimova, FATEBE NERVOUS GLORY, 2024
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Ebecho Muslimova, FATEBE FENCED PIGS, 2024
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Ebecho Muslimova, FATEBE BIRD SHIT BRAIN FOCUS, 2024
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Ebecho Muslimova, FATEBE FARM TO TABLE, 2024