Evocações, Ismael Nery e Lewis Hammond Curadoria Germano Dushá
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Uma aparição trémula manifesta-se diante da vista. A fantasmagoria surge como forma primeva, como pura potência. A mancha que anuncia a figura transparece a substância indizível da qual se originam as encarnações do mundo. O que é entrevisto queima a retina para se perpetuar na memória. Seu advento visual é antes o signo, e logo a chaga. Primeiro, um sinal de fumaça, uma neblina. Depois, um corte e uma cicatriz. Ao marcar a alma, a imagem fará do observador um hospedeiro, um stigmata, que a partir desse ponto deverá carregar dentro de si essa carga vital. Em momento oportuno, a imagem irá emergir outra vez, desvelando-se na mente, reencenando o esplendor de sua revelação.
Nesta mostra arqueada em um século, há dois artistas apartados por um longo e crítico período histórico, mas que conectam-se na energia que suas obras conduzem, comungando aspirações estéticas e espirituais. O diálogo é composto por quatorze peças — oitos pinturas e desenhos de Ismael Nery da década de 1920, e seis pinturas de Lewis Hammond produzidas especialmente para a ocasião — em que corpos, cenários e situações insólitas são revelados por meio de um cortante jogo de luz e sombra, como aparições espectrais. O que aparece, então, em nossa frente? Um autorretrato fantasmagórico. Um duplo entre um homem e seu espírito. Garotos de olhos ocos experienciando transes em conjunturas indescritíveis. Figuras femininas emergindo de um ambiente corriqueiro ou de paisagens ideais. A perseguição inclemente de um santo. Aglomerações nas trevas. A indelével luz dos astros e dos anjos.
Os cem anos que separam o gênio moderno de Ismael Nery dos afiados exercícios contemporâneos de Lewis Hammond apenas reforçam a universalidade de suas buscas, bem como o condão compartilhado de manejar imagens numa linha tênue entre materialização e dissolução. No que pese a escolha pela figura — muitas vezes de uma frontalidade desconcertante —, aquilo que não pode ser visto assume grande importância na atmosfera dos trabalhos. Seja no interior da própria figuração, que se apresenta como fragmento de um evento ou esquema maior, seja na invocação do intangível — aquilo que está oculto ao reino da matéria e encontra apenas signos no mundo. Assim, suas figuras velam e cintilam as emoções e os sentimentos, bem como os fenômenos psíquicos e místicos, abrindo canais entre o que se vê e o que se sente, entre o terreno e o etéreo.
O que sobressai na dinâmica dessas pinturas, portanto, é a capacidade singular de revelação das imagens. Desse modo, o duplo significado da palavra evocação sintetiza a prática dos artistas, remetendo à faculdade de reproduzir na tela memórias, sensações e estados mentais, mas sobretudo ao poder de conjurar o espírito das coisas. Na gravidade com que se exprimem, testemunhamos a tremulação fatal, momento energético decisivo do qual uma ação pode irromper, transformando a realidade material. A atmosfera densa, os tons sombrios e inquietos, as composições carregadas de trágico e possuídas pelo drama, os espaços liminares que despertam a um só tempo aversão e nostalgia, as circunstâncias que apenas com muito esforço admitem a incidência da luz, as temporalidades expandidas, os sopros surrealistas e mágicos no tecido do real… Tudo isso está a serviço de um dispositivo alquímico de transmutação, que nos leva da linguagem conhecida àquilo que não tem nome, que é inexprimível.
Arrebatamento, fulgor, êxtase, paixão, ruptura. Assombros diabólicos e aspirações angelicais, corpos lacerados e sublimação espiritual. É por meio desse angustiante balanço vital que essas obras lidam com o magnetismo da violência e da volúpia ao passo que conclamam a veneração da beleza eterna, inefável. O tremor da carne não impede a vibração da alma, tal qual o abismo é o negativo que faz acender o lampejo da elevação.
Ismael Nery (Belém, 1900 – Rio de Janeiro, 1934) nasceu no instante final do século XIX no Pará, mas mudou-se com a família, em seus primeiros anos de vida, para o Rio de Janeiro. Ainda muito jovem, ingressou na Escola Nacional de Belas-Artes e, em 1920, foi à Paris para estudar na Académie Julian, em Paris. No ano seguinte, visitou outros países europeus — como a Itália — e também o Oriente Médio. Ao regressar, trabalhou como desenhista da seção de Arquitetura do Patrimônio Nacional, onde conheceu o poeta, crítico e colecionador Murilo Mendes (1901-1975), que viria a ser o seu grande amigo e parceiro intelectual até o fim da vida. Logo casou-se com Adalgisa Nery (1905-1980) — que mais tarde seria reconhecida como brilhante escritora, e como jornalista e política combativa — sua alma gêmea e musa maior. O lar do casal foi ponto de encontro de um importante círculo intelectual, composto por nomes como Mário Pedrosa (1900-1981) e Alberto da Veiga Guignard (1896-1962). Em 1927 viaja mais uma vez para a Europa, momento em que conhece de perto o movimento surrealista, torna-se amigo de Marc Chagall (1887-1985) e trava contato com André Breton (1896-1966). A partir daí, sua obra sofre ampliações decisivas, bem como seu corpo irá manifestar os primeiros sinais da tuberculose pulmonar. Em 1934, em seu leito de morte, conta-se que manifestou dois desejos a Murilo Mendes: que ele se convertesse ao catolicismo, e que destruísse todas as suas obras. Como se sabe, apenas o primeiro pedido foi atendido. Faleceu aos 33 anos de idade e foi enterrado com o hábito de irmão leigo da Ordem Terceira de São Francisco.
Artista de complexidade insondável, que conciliou em si paradoxos e contrários, Ismael Nery legou uma obra singular, cujo estilo marcante desdobrou-se em diferentes percursos. A busca pela essência dos seres por meio da superação do limite do espaço e do tempo impulsionou tanto a religiosidade fervorosa quanto a sensibilidade implacável para a beleza mundana. Apesar de ter nascido na região Norte e ser um dos nomes fundamentais do Modernismo brasileiro, percorreu caminho próprio, distante de qualquer vontade de contribuir para a criação de uma identidade nacional. Em outro sentido, desenvolveu um trabalho íntimo, alicerçado na universalidade da filosofia e da espiritualidade. É considerado também o precursor do surrealismo no Brasil. Sobre a rara inteligência e postura do artista, Mário Pedrosa testemunhou: "Príncipe do espírito, desdenhoso de tudo e generoso até a devoção recusava-se a ser um artista de categoria marcada".
Lewis Hammond (Wolverhampton, 1987) vive entre Londres e Berlin, e é formado em
Fine Art na Cass Faculty of Art, Architecture, and Design, e em Pintura na Royal Academy Schools, ambas em Londres, no Reino Unido. Suas pinturas — marcadas por tons ocres e escuros, situações atmosféricas e aspectos sombrios — são povoadas por espaços indiscerníveis e corpos em situações atípicas ou sob franca transformação. Entre transes extáticos, relações afetivas radicais e ritos lúgubres, suas obras despertam, a um só tempo, familiaridade e estranhamento, evocando sentimentos profundos e complexos estados mentais. Nesse novo chiaroscuro calcado numa iconografia muito própria, imagens universais, clássicas e arquetípicas são combinadas com subjetividades, memórias pessoas e imaginações livres, conjurando na tela dramas existenciais com o que há de mais prosaico na condição contemporânea.
– Germano Dushá