Nascituras Rosana Paulino
Nascituras: Que ou aquela que há de nascer. Talvez possa causar estranheza, o fato da exposição de uma artista tão incontornável como Rosana Paulino, ganhar o título de Nascituras. Afinal, a que pode se referir essa palavra, diante de uma das mais sólidas e contundentes carreiras da arte que nomeamos brasileira, de fato? Uma carreira que completa 30 anos baseados em labuta diária nos domínios do seu ofício. Uma carreira que é presença constante em exposições definidoras do campo da arte contemporânea, com as últimas edições das bienais de Veneza e São Paulo.
São muitas as nascituras, os nascedouros, os nascimentos, por aqui. Em uma das minhas visitas (são várias ao longo dos anos) ao ateliê de Rosana, pude captar um desses instantes que deixa ver um muito do pensamento artístico que sustenta essa produção. Entro e me deparo com uma enorme mesa. Sobre elas, várias folhas com os estudos que viriam a se tornar a série “Nascituras”, aqui exposta. Rosana me diz que postas assim, lado a lado, consegue ver cada um dos desenhos, como se estivesse com um grande caderno diante de si. Um desses instantes de contínuo estado de vir a ser, que se impõem nos espaços de trabalhos de artistas com compromisso firmado com suas investigações formais.
Naquele momento, um pouco da característica de boa parte de sua obra, se coloca em pé: o desenho, longamente desenvolvido, que invade as milhares de páginas de diferentes épocas, que fazem parte do arquivo de Rosana Paulino. Esse desenho, de língua própria, onde a linha, elemento expressivo constante no arsenal de Paulino, aparece por entre áreas de cores aguadas.
Nesses trabalhos a própria definição de desenho se expande para buscar vizinhança com o que, a princípio, flerta com noções constantemente associadas à pintura. Mas, na escuta do que diz a artista, ainda estamos diante de um desenho. Naquelas folhas, em uma segunda visita, já as encontro. Essas mulheres entidades, senhora dos tempos e das naturezas.
Um detalhe importante pede a atenção de quem agora as vê expostas. Preste atenção: elas não são sequências da mesma personagem. Não se trata de um tipo geral que se repete. Chegue mais perto! Veja como cada uma delas possui um elã distinto. Como são diferentes mulheres pertencentes ao mesmo tempo e mundo. Cada uma das dez parece se apresentar diante de nós, sem nunca abrir completamente mão de estar consigo, em seu mundo. Uma delas, nos comove com seus olhos fechados, ramificações vermelhas nos braços e cabeça, e linhas (a linha de Rosana) que descem de sua boca. Essa figura que está em pleno instante de surgimento suave e comovente, nasce de uma bromélia. Não qualquer bromélia, mas aquela encontrada no encontro da artista com as plantas do Parque do Jaraguá, reserva próxima ao ateliê.
Ainda outra, dessas mulheres em estado de nascituras, surge em uma das minhas anotações como a “dama das plantas”. Essa mulher cuja mãos se encontram postas abaixo dos seios parece se posicionar como resultado de uma serenidade interior que se expande pelos olhos com ramificações que vemos desde trabalhos da década de 90. Percebam então como esse elemento formal renasce com novos sentidos na série apresentada aqui. E se amplia.
Essas mulheres por vezes, surgem monumentais como as Gêmeas (obra da série Jatobás), resultados da experimentação da artista em uma escala outra. Essas damas arborescentes se fazem incontornáveis, seja pela delicadeza silenciosa ou então pelos sexos, línguas e posição de guerra, como vemos na mulher-entidade- fúria- que não coincidentemente, surge por entre as espadas de Iansã.
A existência vegetal, também nos chama para a nascitura necessária ao nosso próprio tempo. Algo do conhecimento das senhoras pretas nos terreiros e cozinhas, que reverbera (ou deveria) no pensamento do italiano Stefano Mancuso (2019): A noção das plantas como exemplo de formas de organização da vida. Vida que urge nascer, em tempos de alteração na superfície do mundo. Uma vida possível em outra relação com os corpos, sem hierarquizações entre humanos e o resto do mundo natural. Esse é oposto do que vimos fazendo em nome de uma modernidade, que parece nos extinguirá pelo calor ou frio extremos. Uma outra política de vida.
Uma política que passa pelo feminino, tão presente na poética de Rosana Paulino. Um feminino amplo, político e racializado, como o que temos na instalação Leite de Pedra, onde as formas orgânicas da pedra sabão, encontradas por Rosana, como refugos em uma oficina de escultura, vão se deitar sobre pequenas gamelas de madeira. Elas estão envoltas em miçangas e fitas que lhe conferem um outro campo de sentidos, pelo domínio do material e suas possibilidades de reaparição poética. O refugo, a gamela, a fita, se reúnem para dar a ver seios ancestrais. Entre jorros do leite, uma nova nascitura.
Sem dúvida, Rosana Paulino está na nascente de uma nova compreensão do que seja, de fato, uma arte brasileira. Geometria à Brasileira, é um testemunho desse enfrentamento sobre as crenças excludentes de um cânone artístico, que importa constantemente formas estranhas ao seu próprio contexto. Não se trata apenas de uma tela, uma série. Antes disso é um ato político na defesa de uma arte nossa. Afinal, é sobre esse “nosso”, tão nosso, que Rosana Paulino se debruça. Suas plantas e espécies vão das pseudociências coloniais ao encontro de um Brasil que é gigante. Gigante quando olha para sua própria natureza, incluindo as mais duras e difíceis. Um Brasil que vive para além do exótico. Aliás, vem da conversa com Rosana, a melhor definição do exótico no interior da sua produção artística. Ela me conta que em uma das suas viagens ao Rio de Janeiro, ao atravessar o Campo de Santana com um grupo de pós graduandos e alguns professores universitários se depara com um enorme grupo de cutias que por ali vivem. Rosana, enxergou a serie toda ali. As cutias atravessavam um jardim de inspiração francesa, resultado da aspiração europeia, que por sua vez ecoa a própria ideia de jardim como o domínio do gênio humano (europeu) sobre a natureza. Rosana, me pergunta: O que é o exótico nessa paisagem? Com certeza, não são os animais. E na série Natureza Brasileira? Onde está o exótico?
São por essas e muitas outras razoes mais, que a produção dessa artista central para a arte brasileira, Latino-americana, Atlântica, se revela na própria noção de nascitura. Aquilo que está por nascer, passa pelo tanto que vemos nessa exposição.
– Igor Simões
Curador, historiador da arte, pesquisador da obra da artista
O trabalho de Rosana Paulino é centrado em torno de questões sociais, étnicas e de gênero, concentrando-se em particular nas mulheres negras da sociedade brasileira e nos vários tipos de violência sofridos por esta população devido ao racismo e ao legado duradouro da escravatura. Paulino explora o impacto da memória nas construções psicossociais, introduzindo diferentes referências que intersectam a história pessoal da artista com a história fenomenológica do Brasil, tal como foi construída no passado e ainda persiste até hoje. A sua pesquisa inclui a construção de mitos – não só como pilares estéticos mas também como influenciadores psíquicos. Paulino – cuja produção artística é inquestionavelmente fundamental para a arte brasileira – produziu uma prática de reconstrução de imagens e, para além disso, de reconstrução da memória e das suas mitologias.
Rosana Paulino (*1967, São Paulo) vive e trabalha em São Paulo.