Interspecific Bodies Daniel Dewar & Grégory Gicquel

Apresentação

A Mendes Wood DM tem o prazer de apresentar Interspecific Bodies [Corpos interespecíficos], a primeira exposição do duo franco-britânico Daniel Dewar e Grégory Gicquel no Brasil reunindo um conjunto de trabalhos inéditos, que inclui nove peças em madeira entalhada e uma escultura em mármore. Há mais de vinte anos, Dewar e Gicquel vêm explorando e experimentando técnicas, materiais de artesanato e ferramentas modernas e tradicionais em uma constante investigação da relação entre o artista e a humanidade – em termos mais amplos – e o trabalho e a produção.  

Cada uma das obras é criada pelas mãos dos próprios artistas após longos períodos empíricos e laboriosos de tentativa e erro, falhas fecundas e importantes surpresas. Seu repertório de habilidades artesanais, tanto arcanas quanto altamente tecnológicas, e o conhecimento que possuem dos materiais são extraordinários, como a marchetaria com pedra usando corte por jato d’água, a cerâmica a lenha, a lã Aran feita à mão, o mármore português esculpido e o bordado computadorizado, entre outros.

Além da sua abordagem singular em relação a materiais e processos, Dewar e Gicquel têm criado excitantes e complexos desvios representacionais ao combinar seu suporte com uma miríade de motivos incongruentes. Seja no, inusitadamente, tautológico e arrebatador exercício de modelagem manual de pias comuns de cerâmica, na representação surrealista de legumes e entranhas humanas em madeira que aparecem em móveis de carvalho, na imagem associativa de borboletas em intricados e efêmeros pontos em tecido ou nas ousadas mudanças de escala que resultam em pés ou blusas de concretos gigantes, a produção do duo usa símbolos e arquétipos tanto como motivação – uma faísca de entusiasmo – quanto como um augúrio de sua elaborada filosofia pessoal.

Conforme os visitantes entram no espaço expositivo, eles se confrontam com Flipper, de 2022, um pé de pato de mergulho feito em mármore português.  Esse trabalho pode ser visto como uma prolongação da série, de 2017, Nudes I-VI [Nus I-VI], na qual partes do corpo non finito combinadas com acessórios de banheiro operam um encontro inesperado entre o acadêmico (estilo, em geral, esculpido em mármore nobre branco) e o funcional (pias, torneiras, chuveiros). A correspondência, aqui, continua com a pedra-pomes, muito usada em banheiros nos anos 1980, e que, em contraste com o gosto comum por banheiros higiênicos e estéreis, remete a uma carne real, cheia de veias, e caucasiana. Portanto, o pé de pato, por meio da analogia, evoca a forma humana ausente e, por meio do material, sugere a fluidez da água. O trabalho também reflete o interesse do duo pela grande separação entre humano e animal ao sinalizar a insatisfação humana e o nosso desejo de aperfeiçoar o corpo, ultrapassando nossos limites ao imitar a mobilidade cetácea.

Na sala ao lado, uma série de três esculturas de carvalho de baixo relevo aparece alinhada com a parede. Os redemoinhos alucinatórios do grão da madeira são exacerbados por  composições bizarras: uma delas mostra torsos sensuais pelos quais desliza uma família de Megalobulimus paranaguensis; a outra traz criaturas entre camadas de orelhas, dedos, mamilos e abdomens, sem gênero definido; enquanto a terceira mostra um molusco solitário navegando em um tableau de pés, cujos dedos parecem se multiplicar em um movimento que de certa forma lembro o stop-motion. Apesar de sua qualidade acabada e estática, esses trabalhos falham e vibram; seus incessantes redemoinhos são tão hipnóticos quanto nauseantes. As lesmas trazem a conotação da lentidão, as nervuras da madeira retomam a passagem regular do tempo e as partes do corpo emergem e submergem como se estivessem sob uma cortina d’água: somos nada mais do que visitantes nesta Terra.

Na série de bancos e armários de carvalho, Dewar e Gicquel continuam a especular sobre a distinção entre objetos inanimados e criaturas ou plantas animadas, bem como sobre a separação histórica entre objeto de arte autônomo e objeto útil. Cada banco é composto por uma estrutura estável e austera, na qual se seguram lesmas esculpidas, seus corpos carnudos escondidos nas espirais de suas conchas. Almofadas roliças com intricados bordados são acrescentadas como objetos de decoração e conforto, ao mesmo tempo que são um desdobramento do pensamento dos artistas sobre a coabitação de espécies. Talvez como uma reminiscência de uma viagem de carro que fizeram do sul ao norte do Brasil em 1998, Dewar e Gicquel incorporaram mariposas-falcão nativas nessa nova versão, ao lado de outras espécies de mariposas eurasianas, criando um globalizado ecossistema decorativo e especulativo.

Dois móveis sólidos de carvalho completam o conjunto da obra: nos painéis do primeiro surge uma coleção de abóboras-meninas, pontuadas por um nariz aqui e ali. O segundo é cravejado de enormes amêijoas – a mais arquetípica das conchas – contrabalançadas por orelhas humanas (de concha a cóclea sem demora). Associações formais e etimológicas à parte, os legumes e os pedaços de corpos nos lembram que a madeira usada para fazer esses móveis também cresceu um dia, pulsando vida. O trabalho lida, portanto, com noções de consciência, cuidado e sensualidade entre as espécies.

Interspecific Bodies faz com que o humano e o não humano coalesçam: mescla animais, insetos e plantas, atentamente selecionados, com materiais naturais, trabalho físico e esculturas-móveis funcionais concebidas para receber formas e usos corpóreos. Adotando uma posição anticatastrófica, Daniel Dewar e Grégory Gicquel abrem uma janela especulativa face a um futuro alternativo que se nutre, de modo voraz,  de um passado pastoral: homem, mulher e planta são – na visão do duo de artistas – nascidos da mesma terra, talhados da mesma pedra. Numa época em que a proximidade entre a vida humana e a não humana é tão corriqueira, tão invasiva e tão potencialmente destrutiva, mas ainda assim tão invisível (o (super)consumo de carne animal, a destruição dos habitats naturais, a transmissão de zoonoses entre os seres vivos), Dewar e Gicquel oferecem, a partir de sua prática física, um ponto de vista ao mesmo tempo singelo e mobilizador, que revela as deficiências do excepcionalismo humano.  

Obras
Vistas da exposição