Creatures Kasper Bosmans
A Mendes Wood DM tem o prazer de apresentar Creatures [Criaturas], a primeira individual de Kasper Bosmans na América do Sul, que acontece no novo espaço expositivo da galeria em São Paulo.
Conhecido pela forma multifacetada e divergente com que aborda o fazer artístico, produzindo trabalhos que variam desde esculturas até instalações, pinturas e desenhos, a prática de Bosmans se vale de uma combinação complexa e inebriante entre arte erudita e literatura, cultura popular, mitologia e antropologia, sob uma lente queer e ludicamente minimalista, que observa e reinventa, de modo subversivo, as narrativas que dominam o nosso mundo. Essas narrativas, que ele cutuca, atiça e provoca, são relevantes não apenas para o mundo pessoal do artista (ou para o seu ‘armário’), mas também têm uma ressonância universal.
A exposição de Bosmans tem como grande influência a sua recente mostra institucional Husbandry, realizada no WIELS, em Bruxelas: “O que eu estou trazendo da mostra no WIELS é a ideia de “exemplo”. Quando eu estava crescendo, eu não tinha um exemplo queer de fato. Ninguém falava do tipo de amor que certos artistas sentiam. É por causa dessa falta de exemplo que as pessoas correm o risco de serem marginalizadas pela sociedade”, explica Bosmans. A presença de um certo grau de tensão, de posição contrária à ortodoxia e da impossibilidade de navegar com facilidade por cada único detalhe do seu trabalho são ativadores de uma reflexão intencional do artista sobre o que é ter uma infância queer para muitas pessoas: “Tudo é claro para as pessoas que estão no poder. O resto de nós trafega nas margens, e somos forçados a olhar para as margens”.
Ao mesmo tempo que os trabalhos lidam com essa ideia de desejo, são também dotados de humor, diversão e certa vulgaridade insinuante para depois serem sublimados por meio de uma estética minimalista, transformados em algo completamente novo. Ideias e formas são sintetizadas em uma linguagem alternativa que, de maneira proposital, evita explicações didáticas, da mesma forma que, para muitas pessoas na infância, nada é oferecido para aliviar o peso da sua experiência queer. A mostra começa com dois grandes murais representando tartarugas, uma referência à tartaruga coberta de joias que aparece no romance À rebours, de Joris-Karl Huysmans, possivelmente um dos livros queer mais fundamentais do século XIX. O romance serve como modelo para a ideia do colecionador de arte, homem cis e queer, que constrói sua própria identidade dentro de um armário lotado de objetos exóticos que não apenas representam a pessoa, mas, de certa forma, também mostram um desejo de intimidade impossível de ser obtido por meios convencionais.
São muitas as referências e representações de animais e do mundo natural, que vão de novas iterações dos seus famosos Dwarf Parade Dogs [Cachorros de desfile anãos] – inspirados na instalação de Paul Thek, Untitled (Dwarf Parade Table) [Sem título (Mesa de desfile anã], de 1969 –, a coloridas esculturas de aço esmaltado representando o caracol pintado de Cuba (Polymita Picta) e a sua série Wolf Corridor [Corredor de lobo], que fez parte da exposição no WIELS. “Estou interessado na forma como os humanos olham para os animais para se expressarem, como criam relações emotivas com eles. Isso remonta à ideia de criar um espelho da sociedade, de coletar objetos, animais e coisas em seu armário com os quais você se identifica e seduz”, diz Bosmans.
Em outra parte da mostra, Carry On, um conjunto de esculturas feitas de bronze, no formato de blocos de manteiga empilhados, estabelece um jogo entre a ideia de bagagem de mão (carry on luggage, em inglês) e uma insinuação sexual comum. Carry On soa, ao mesmo tempo, vulgar, engraçado e comovente ao fazer referência ao lucrativo contrabando de manteiga entre as fronteiras da Bélgica e da Holanda no século XX. No entanto, esses trabalhos, que fazem parte da série Boy Butter [Menino manteiga], são também uma alusão bastante direta ao tipo de lubrificação necessária para aventuras furtivas entre homens nas florestas europeias, numa leitura subversiva do traficante macho alpha que arrisca sua vida para colocar pão e manteiga na mesa da família. Os trabalhos pegam emprestado o título de uma série de televisão homônima, que fez muito sucesso no anos 1950 no Reino Unido, na qual, o personagem principal, interpretado por Kenneth Williams, o renomado ator camp que viveu a vida inteira dentro do armário, navega por um mundo heterossexual de trocadilhos diretos, piadas com enfermeiras sexy e insinuações lascívias.
Todas essas ambiguidades, contradições e zonas de indefinição se relacionam ao interesse do artista pelo conceito de “monstro”. “Pense na Quimera, por exemplo, que é ao mesmo tempo bode, leão e cobra. Se você é mais do que uma coisa só, isso se torna inexplicável e, portanto, uma monstruosidade”, explica o artista. Mas, como se fosse por ordem do destino, a palavra “monstro”, em termos etimológicos, deriva do latim monstrate, que significa “mostrar”. Monstros são, na verdade, exemplos que representam uma questão maior. Monstros são demonstrativos.
A rede de conexões tecida por Bosmans é lúdica, provocativa e conceitual, sem deixar de ser crassa e alusiva. Desenrolam-se narrativas e inversões que nunca são necessariamente resolvidas, pois, de certa forma, não é o papel do artista resolvê-las já que elas existem há séculos sob a forma de dogmas sociais, comportamentos históricos e desvios daquilo que é considerado ortodoxo.