A Thousand Ways to Kill a Monster Cibelle Cavalli Bastos
A Mendes Wood DM tem o prazer de apresentar a mostra Mil Maneiras de Matar Um Monstro, a primeira exposição individual de Cibelle Cavalli Bastos na galeria. Em sua nova série, a artista trabalha com vídeo-instalações, esculturas em látex, cerâmicas, pinturas e outras mídias, trazendo ao centro de discussão questões a respeito das construções de identidade, seja de gênero, cultural, social ou política. O monstro, apontado pela artista, é todo e qualquer ato de normatividade que divide o ser do humano, que separa o corpo da essência.
A interdisciplinaridade é o pilar intrínseco nas pesquisas de Cibelle Cavalli Bastos. Suas narrativas quebram qualquer possível dicotomia entre imagem e som, unem massa e espaço, narra a questão do corpo e o conceito de multimídia. Sua construção iconográfica é baseada em um processo não limítrofe, entre o inicio e o fim, entre o conceito e a concepção.
Paucetas não-binárias:
Uma conversa entre Cibelle Cavalli e Pablo León de la Barra
PLB Cibelle, eu te conheci há doze anos, quando nós dois morávamos em Londres. Na época, você era (e ainda é) uma cantora e intérprete de sucesso. O que te fez decidir expandir sua prática às artes visuais?
CCB O lance é que as artes visuais sempre foram parte do meu processo. A maneira com a qual eu lidava com o som sempre foi como se ele fosse uma matéria a ser moldada, algo que eu pudesse usar para pintar, para criar espaço, imagens. As pessoas tendem a identificar arte sonora com barulho, ou com a palavra falada, colagens sonoras, reprodução de frequências, mas uma vez que tenha voz e que seja cantada, é automaticamente vista como música, ainda mais se esta foi originada por um corpo feminino. Neste caso, e na maioria dos casos, a arte sonora é lida como música, e o espectador define a pessoa com a voz cantada como cantor.
Eu não sou cantora, embora cante. Eu não sou pintora, embora eu pinte. Eu não sou escultora, embora eu esculpa, e assim vai...
Eu nunca fui definida por nenhuma dessas coisas, pois isso seria definir alguém pela forma, e não pelo o que dá a forma. Eu trabalho com o que dá forma, com conceitos, ideias, filosofia. Tudo o que eu fiz sempre respondeu à demandas conceituais. Estou sempre trabalhando com o gesto mais simples para o que eu devo atingir, colocando restrições à racionalidade, e em uma conversa com materiais, por que toda vez eles mostram o caminho. Então não é que eu tenha decidido expandir para o visual. Foi mais uma necessidade de retirar meu corpo do trabalho e ter outros veículos para comunicar, e ao mesmo tempo foi um tipo de saída do armário do trabalho visual que eu vinha fazendo há anos, basicamente desde que eu era adolescente.
Pensando novamente, para ser honesta, há outro aspecto que talvez responda à sua pergunta mais claramente, que é a respeito da linguagem. Porque, na época, eu não via nada parecido comigo na arte, nenhuma linguagem para a minha prática. Então, na época, eu achava que ali talvez não fosse o meu lugar. Uma coisa muito de uma mulher com a misoginia internalizada, que se coloca de acordo com o olhar do outro, neste caso o olhar do macho e a norma patriarcal. Com a formalidade internalizada do mundo e com o olhar de outros sobre a minha produção, vendo-a apenas pela forma, eu achei que deveria ir para o mundo da música, e da indústria da música, a qual eu via como arte sonora. Mas o lance é que eu nunca verdadeiramente pertenci àquele lugar. Minha conversa, em seu cerne, não se relacionava com aquele mundo e com aquela indústria harmoniosamente. Foi ficando cada vez mais fora do lugar, então eu tive que seguir em frente.
PLB Quais outros artistas te inspiram ou identificam-se com o que você está fazendo? Enquanto tínhamos essa conversa eu estava tentando pensar em outras práticas artísticas no Brasil que sejam tão diretas no que diz respeito à exploração da sexualidade. Você pode pensar nos Bichos, da Lygia Clark, como tentativas de libertar a buceta da repressão conservadora, ou nos Parangolés, de Hélio Oiticica, como trans. Eu acho que, muito embora a sexualidade brasileira possa ser, por vezes, um clichê de marketing usado e abusado, na realidade é muito raro que artistas e obras brasileiras discutam sexualidade, que na maioria dos casos permanece reprimida sobre uma polidez pós neo-concreta. Eu me interessaria em ouvir seus pensamentos sobre tudo isso.
CCB Qualquer artista que está trabalhando com a desconstrução da identidade em qualquer nível ou simplesmente questionando-a, e descolonizando o pensamento, qualquer artista que coloca nossa cognição em cheque será também sempre inspirador para mim. Eu gosto de Fannie Sosa, com suas estratégias de descolonização do corpo através da combinação da presença na web, palestras, conversas e twerkshops, e de Aleta Valente com sua obra performática (em andamento) no Instagram, Ex-miss Febem, que cruza gênero e classismo, testando os limites do que é aceitável que uma fêmea faça e assim por diante. São as primeiras duas que me vem à mente, talvez não tão claramente relacionadas quando você olha para nossas obras, mas elas são minhas contemporâneas e nós lidamos com muitos dos mesmos assuntos de ângulos diferentes. O que eu amo nelas é o quão orgulhosas e assertivas elas são de seus temas e de seus próprios corpos. Elas personificam verdadeiramente sua pesquisa e mostram-se integralmente para o que quer que aconteça, dispondo-se a exporem-se e a correr riscos. Este comportamento inspira outros a fazerem o mesmo. Eu me inspiro em suas abordagens.
Eu concordo que, paradoxalmente, vem havendo uma repressão aqui no Brasil que tem a ver com sexualidade, e provavelmente isso pode ter tido uma influência como a que você descreve, assim como um enorme classismo, que se manifesta na drag que todo mundo veste, no léxico e no gestual da performance diária. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que os Bichos da Lygia Clark podem estar indo além das bucetas e direto para a fluidez do ser. O amorfismo da subjetividade enclausurada em um corpo, com os Bichos manifestando esta subjetividade incorporada a qualquer formato ou forma, e com o Hélio indo além de trans e drags, e evidenciando que qualquer tipo de roupa é na verdade um tipo de drag... drag macho, drag fêmea (no binário) ou drag chique, drag executiva, basicamente insira antes da palavra drag qualquer que possa ser a identidade da performance necessária para interagir intimamente e socialmente a qualquer hora, por quanto tempo for... Então o Parangolé vem como um tipo de vestimenta sem gênero não-binária, para unificar as pessoas, para retirar as pessoas das formas de gênero, assim como de classes ou do que quer que roupas possam determinar em um corpo e assim por diante. Mas esta pode ser apenas a minha interpretação.
Tudo isso que eu posso ter interpretado nos trabalhos desses artistas é, na verdade, meu objetivo. A diferença é que, devido à repressão que nós tivemos e ainda temos estar conflitando com a liberação que eu vejo surgir em São Paulo, é uma época muito fértil e também muito urgente, então as paucetas tornam-se muito necessárias.
Eu sei que estou me repetindo, mas toda vez que eu penso em qual genitália designar a uma situação de gênero, eu quero morrer de rir. É uma loucura para mim que um pedacinho do corpo de alguém possa ser tão importante em determinar o que essa pessoa pode ou não fazer na vida, a opressão e assim por diante. É realmente ridículo, então qualquer trabalho que lide com isso vindo de mim terá que ser assim.
Na verdade, nada num corpo deveria servir de contexto para classificar e regular a subjetividade. Nem a genitália, nem a pigmentação de pele, nem a localização geográfica do nascimento da pessoa, ou o que quer que venha à tona a partir daquele corpo, como sua aparência ou performance. O corpo não é o ser. Nós devemos ir além disso e estarmos presentes independentemente do que vemos como um corpo na nossa frente. Estar presente não para sermos impulsionados pictoricamente pelo que (quem) nós encontramos em um monte de conceitos pré-programados da sociedade que colonizou nosso pensamento e que tanto nos prejudica, como o racismo, a misoginia, a homofobia, a transfobia, o classicismo e assim por diante. A presença e a falta de julgamento resolve isso. Desprogramar nosso pensamento, nosso olhar.
PLB Você falou antes sobre ser não-binária. Você pode me falar sobre sua reflexão da sexualidade e como as obras e a exposição associam-se com estas ideias?
CCB A exposição começa com uma obra em neon que diz thou art, que no inglês antigo traduz-se por você é, como uma simples lembrança de apenas ser. Antes de qualquer programação feita pela sociedade, qualquer construção genitália, gênero, identidade, cor da pele, classe, uma pessoa é. Alguém está constantemente transformando-se, e este alguém não é o corpo que ele habita, esse alguém é a subjetividade, que é vasta, está em constante evolução, transformação, e não um objeto, não um mero corpo. Você não É nem é, apenas é, ou melhor, esta sendo, dado que em inglês usamos apenas o verbo to be para dizer que você é fluído. Assim como para o dizer você está aqui. Ao entrar na exposição a primeira coisa que acontece é a subjetividade confrontado o próprio corpo, pixelado pelos espelhos, pode ver a própria presença, performatividade, seu gestual. No espelho um texto, um convite a pensar sobre o próprio corpo, sua movimentação pelo espaço e pelas temperaturas de gênero que carregamos, performamos. Este convite não é somente a pensar sobre o próprio corpo, também é para via um exercício de percepção e consciência interna, e neste processo ter-se um porta de entrada para um processo de desconstrução de identidade a partir do corpo e da performatividade, neste estágio, atrelada ao gênero.
Eu gosto de pensar na teoria do universo holográfico e de me lembrar sempre que a visão acontece num lugar muito escuro do cérebro. Tudo isso que nós temos por realidade pode ser um mero consenso. Numa sala com 10 pessoas, estão presentes 10 realidades paralelas, e pelo menos 100 identidades. Sendo que para cada pessoa na sala existe a realidade interna de como cada um percebe o seu entorno, e interiormente há o que a pessoa pensa que, portanto uma ideia de si, o que a pessoa esta sendo, e o que esta pessoa é para os nove que a observam.
Para se matar o monstro da identidade, do ap(ego), é necessário que ultrapassemos a noção de gênero. Gênero, na primeira sala, está a Pauceta Imperial.
A pauceta pra mim reflete uma atitude bufônica e fanfarrona minha de tornar épico algo que me faz rir, por que a risada para mim é a melhor saída. Uma pessoa que, como eu, nasce com buceta será portanto socializadx e programadx para uma vida voltada para dentro, para a casa, para não ocupar espaço, fechar o corpo, não demonstrar nada que se mostre o tal masculino, exercer apenas a delicadeza e suavidade, atender a demandas de olhares dos outros. Já uma pessoa que nasce com um pau, será portanto socializadx e programadx para fora, para o mundo, para conquistar e ocupar espaços, para fora de casa, abrir o corpo, partilhar o corpo, exercer a assertividade, a agressividade, tolher o seu emocional, não demonstrar nada que se mostre parte do tal todxs nós.
Então eu pensei, e se tivéssemos genitálias hibridas, veja bem, não estou falando de intersex, que sofrem tudo o que relatei acima de maneiras mais complexas ainda, mas digo, e se a gente não ligasse pra isso, que cada pessoa tivesse um lance diferente entre as pernas, mesmo nas relações sexuais, e se a gente tivesse uma orientação vibracional, ao invés de uma orientação sexual, por exemplo? Tanto faz o quer que fosse a genitália de quem nos atrai. Esse presente surpresa nos causaria mais presença. Enfim, apenas resumindo, realmente o corpo que alguém tem e a genitália que se tem no corpo assim como a pele, o formato do corpo, ou o que seja, não deveria importar o tanto que importa na sociedade a ponto de ditar que tipo de vida essa subjetividade vai ter.
Ao atravessar da primeira sala para a segunda, começamos a encontrar as carcaças de roupa e látex, que eu as batizei de CAS(C)A / \ CARNIÇA.
Me interessa muito a relação que temos com as roupas. Por exemplo, quando alguém vai trocar de gênero, a primeira atitude é mudar a roupa. Eu considero todas as roupas uma forma de drag. Esse drag todo pra dentro do látex é essa casca de identidade, agora aqui já não falamos apenas de gênero, falamos também de individualidade pelo próprio styling, falamos de classe, de representação de cultura como signos onde fincar a identidade.
No cantinho perto do banheiro se encontra o trabalho a, not I, ou isso, não um Eu, que reflete uma busca, de se transformar nessa essência de ser apenas uma existência, sem o tal do eu ter importância, ter cada vez menos eu nesse corpo. Ele foi feito com roupas minhas de varias épocas, onde claramente eu fui diversas pessoas, roupas que possuo já a quase 10 anos e que está mais do que na hora de deixar partir. De desapegar destas identidades para que se possa sempre estar vivx, pulsante e no agora.
O video na segunda sala, o SUR-FACE onde lido com maquiagem, neste trabalho a desconstrução continua. Eu desde a adolescência eu vejo meu corpo e rosto como uma tela vazia onde a projeção do próximo opera, assim como a minha própria projeção, e que esse corpo e rosto pode ser qualquer coisa, que este corpo e rosto não são eu, e portanto podem ser abstraídos.
Espalhadas pela sala estão as cerâmicas. Elas são as linguarudas, a boca e língua, assim como o cu, que todo mundo tem, e nos une, e também significa nossos quereres, desejos reprimidos a serem trabalhados. A tela no fundo da segunda sala, aquela enorme colorida, é um retrato de subjetividade, sem as construções todas, sem o corpo que ficou lá atrás como as cascas. Logo acima dela, uma outra convocação: run naked with the wind dressed up in courage ou seja, corra por aí despidx de conceitos de si, de construções, deixa tudo cair por terra, com coragem, há de ser ter coragem pra deixar o ego ruir e apenas existir em presença, sem pré-conceitos quanto ao próximo e a si mesmx, pois tudo o que se encontra é o grande desconhecido, e este desconhecido é o fora da caixa onde moram as maiores lições, o crescimento, a transformação. Então coragem pra deixar de ser quem se acha que é, coragem para deixar quem não vibra mais com a pessoa que você está sendo partir. Coragem para tudo virar de pernas pro ar pois quem não arrisca não petisca, e não expande. Enquanto o nosso ego, e apegos estiverem julgando, dificilmente haverá unidade entre as pessoas. Então coragem.
[("CIBELLE"{CAVALLI)BASTOS}] (São Paulo, 1978), é um coletivo em fluxo incorporado. Radicadx em Londres, a artista possui quatro álbums lançados desde 2003, sendo Las Venus Resort Palace Hotel (2009), interpretado por Sonja Khalecallon, expandido em performances tanto no Museu Reina Sofiaem Madrid quanto na Miami Art Basel em 2014. AVAF (assume vivid astro focus) 28a Bienal de São Paulo(2008); Marathon na Serpentine Gallery, Londres (2009); Esquemas para um Oda Tropical (2012); 31a Bienal de São Paulo, (2014); Música.Performance, CCBB, São Paulo (2015); Com o tema Contamin.AÇÃO, ganhou o prêmio La Muta – Altre il Silencio em Urbino, Italia.
Pablo León de la Barra (nascido em 1971, na Cidade do México) é um curador independente, radicado emlondres e em Nova York. Atualmente, é curador no Museu Solomon R. Guggenheim para a fase latino-americana da Guggenheim UBS MAP Global Art Initiative. León de la Barra recebeu seu Ph.D em História e Teoria da Architectural Association School ofArchitecture, em londres. Ele fez curadoria ou co-curadoria de exposições em diversas localidades internacionais, incluindoa Apexart, The Architecture Foundation, Art in General, o Centre d’Art Contemporain Genève, Centro Cultural de España, a David Roberts Foundation, a Kunsthalle Zürich, a Luis Barragán House and Studio, e o Museo Tamayo. Em 2012, foi o primeiro beneficiário do Prêmio Coleção Patricia Phelps de Cisneros de Viagem pela América Central e Caribe.