Depois da pedra Paulo Pires

Apresentação

A gravidade da matéria entalhada nos convoca. A pedra esculpida estabelece seu campo magnético por meio de um tramado sensível entre sua condição primordial e a ação do artista. Ao revelarem-se diante de nós, as formas nos fazem perceber corpos e movimentos numa ecologia singular de gestos mínimos: um sujeito em introspecção, dois que disputam um espaço, outros que trocam afagos, um amontoado infinito de gente… Tratam-se, porém, menos de representações do que de sugestões; menos de definições narrativas do que de um tratado sobre a capacidade de criarmos e manejarmos livremente as nossas histórias a partir das trocas com o meio.

Paulo Pires trabalha o arenito numa condição-limite entre o seu estado orgânico e a evocação do material. Sua prática começa com a escuta profunda e reverente: primeiro, é preciso que as pedras estejam "em grito", isto é, dispostas a indicarem um caminho de expressão. Depois, é a sua constituição inicial que irá orientar o talho. Por via dessa ética instituída e do processo bidirecional de transferência energética entre matéria bruta e artista é que vão aparecendo as novas possibilidades. O método intenso envolve a intuição que atenta, o tato que sente, o banho de água que amacia e, por fim, o corte preciso que desce as ideias no elemento telúrico. No ponto de contato entre as mãos e a substância criam-se os canais para a transposição das emoções do criador para criatura, e vice-versa.

Nesse jogo de corpo espiritual, físico e dialético, é a própria matéria-prima a maior referência do artista; o insumo e o assunto, o objeto e a metáfora. Suas formações corpóreas emergem daí numa afiada linha ambígua entre figura e abstração, dureza e flexibilidade, inércia e transformação. Prontas para se erguerem ou se desmancharem a cada segundo, as situações às quais convidam o espectador, portanto, só podem ser dinâmicas: provocam quem se aproxima rotacionando os sentidos, cravando diferentes experiências a cada ponto de vista.

Ao percorrermos o circuito composto por essas rochas, a monotemática não impede a pluralidade de significados e relações. É possível experienciar um espectro que vai do magma à aparição mineral na crosta e às imaginações dos artífices de todos os tempos. Entrevemos então os morros e labirintos de falésias; as primeiras incisões nas paredes de cavernas e nos pés dos desfiladeiros; os colossos olímpicos e o mito do golem; os empreendimentos da escultura moderna e sua busca pela síntese na leitura da história; e as complexas emergências contemporâneas. Ao operar a animação do inanimado, sua invenção dá conta das grandes questões universais e da tradição da escultura, mas também de suas vivências particulares, de sua biografia, memória e, sobretudo, dos livres arranjos de sua visão.

É assim que a jornada traçada por sua obra vai das posturas pessoais às lutas coletivas, da solidão do indivíduo aos enredos amorosos. Em suas massas antropomórficas aparecem as posições anatômicas, os semblantes fundamentais, os desejos da carne, o erotismo do toque, as paixões irrefreáveis, os deslocamentos dos povos, as pedreiras e o garimpo, a correria coletiva e o acotovelamento das massas. Com um traço muito próprio, o artista confere tônus às intenções cotidianas, fazendo ver os fluxos correntes das subjetividades e os efeitos que mobilizam na superfície. Na semelhança do todo formado pelas diferenças de cada unidade, marca-se o peso incontornável da vida, mas igualmente a capacidade elástica da criação. Enxergamos sempre um mesmo mundo, mas muitas e sempre renovadas maneiras de existir.

– Germano Dushá

Obras
Vistas da exposição