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27/11 2021 - 15/01 2022

1.
Fiat – faça-se – é o imperativo com o qual uma autoridade exorta a fé comum no valor de uma moeda. A moeda fiat é aquela que, desvinculada das suas equivalentes em ouro ou prata, que podem ser convertidas no valor do material do qual são feitas, depende da quase mágica ilusão de que o contrato simbólico decretado por um rei, um banco ou um Estado irá sustentar a equivalência de todos os câmbios possíveis. Portanto, apela-se a certa fé, mas isso é algo que só pode ser realizado a partir de um imperativo. Faça-se. E, assim, num exercício exemplar de performatividade, faz-se.  
 
As moedas metálicas, que estão em fase de desaparecimento nas economias mais prósperas da Europa, ainda mantêm, na maior parte do planeta, a frágil certeza proporcionada pelo acúmulo de um peso de valor ponderável no fundo de um bolso ou de uma carteira. Mesmo sabendo que o níquel, o cobre e o latão presentes em quase todas as ligas que produzem essas moedas não têm qualquer relação com o ouro que eles aspiram representar, é reconfortante sentir o peso dessas pequenas peças de metal, como um apoio para renovar a exortação na fé do fiat.  
 
Talvez por isso as moedas de um euro, cujo design básico a União Europeia não alterou desde a sua cunhagem original, tenham uma borda dourada que emoldura, como um anel, sua efígie interior.  
 
É claro que aquilo que dá legitimidade ao seu valor não é o dourado da borda que sugere o ouro, mas sim a efígie que representa a autoridade no disco inferior da moeda. A cara de um monarca, o emblema de um país ou a referência cultural considerada exemplar do caráter nacional dotam a moeda do respaldo simbólico investido pela autoridade estatal. No complicado contrapeso de poderes da União Europeia, a continuidade da imagem no reverso, idêntica em todos os países, contrasta com a cambiante efígie do seu anverso. Cada país se encarrega da sua referência cultural, do seu emblema nacional ou da sua cara de monarca para apelar à legitimidade do fiat. Não obstante, em se tratando de outorgar fiabilidade ao câmbio, qual seria, por exemplo, a legitimidade da cara de um monarca espanhol que é investigado por evasão fiscal e recebimento de comissões ilegais?  
 
A borda dourada que emoldura a efígie do euro se parece muito com as auréolas das representações cristãs. Um círculo dourado rodeando um rosto assinala, indiscutivelmente, uma qualidade sobrenatural. A qualidade de um santo ou de um valor monetário. Mas o efeito mágico começa a desvanecer quando imaginamos o desgaste do retrato em relevo passando de mão em mão até desaparecer ou quando encontramos o gesto de Runo Lagomarsino que acelera esse desgaste poético a partir de um golpe limpo, martelando o valor de centenas de moedas para fora de suas auréolas. Dessa forma, ao olharmos para os discos desprendidos de seus anéis dourados e fundidos na forma de um prato simples, sem qualquer outro atributo a não ser o seu peso impróprio para um objeto tão ordinário, reconsideramos todo o aparato ilusório que sustenta a ficção do valor. E Runo faz isso sem recorrer ao ato iconoclasta que a imagem de um martelo em mãos poderia sugerir. Reconhecemos a leveza na precisão do golpe que remove o vínculo mágico entre essas moedas e o seu valor, pois sabemos que foi com o mesmo golpe preciso que tal valor acabou impresso no metal. Essa simetria perfeita converte o que poderia parecer um ato de vandalismo pauperista em um preciso mecanismo poético de “desacunhar”.  
 
 
2.
Fiat Lux – faça-se a luz – é o ato inaugural da cosmologia bíblica, seguido da ilustração como projeto iluminador. Michael Marder se pergunta se o projeto da ilustração não é, por fim, o paradoxo de um fogo sem calor, de uma luz sem resíduo. Iluminar os fatos para conhecê-los, sem queimá-los ou sem queimar-se. A temporalidade da luz que se faz a cada amanhecer, acompanhando a renovação pontual da notícia impressa no jornal de cada manhã. Uma ideia um tanto estranha em nosso presente de notícias ininterruptas que sugere, contudo, uma visão de mundo em que os próprios eventos pareceriam acontecer apenas sob a luz que os iluminava. No trabalho de Runo A Cloud of Smoke [Uma nuvem de fumaça], o jornal do dia recolhe o resíduo da cera de uma vela, tornando visível o rastro irreduzível deixado pela luz – pelo calor do fogo –, que nunca desaparece por mais que tentemos evitá-la.  
 
O trabalho de Runo Lagomarsino apresenta perspectivas alternativas sobre as relações de poder histórico, político e cultural. Muitas vezes empregando estratégias de deslocamento e transformação para questionar a escrita da história, especialmente no contexto da América do Sul, suas instalações, esculturas, quadros e filmes enfocam como o ambiente político e social de hoje se desenvolveu através de processos históricos e como isso cria metáforas e imagens das quais acompanhamos a história e sociedade.
 
A obra de Lagomarsino encontra-se com um projeto crítico e descolonizador. No entanto, ao fazer isso, ele não procura principalmente contar outras histórias, revelar verdades ocultas ou construir novas narrativas históricas a partir da perspectiva dos colonizados. Em vez disso, seu trabalho tem como objetivo recontar as mesmas histórias de diferentes maneiras e descobrir dependências conflitantes e eventos políticos complexos sem reduzir sua inevitável ambigüidade.
 
Procurar por fraturas, por caminhos cegos de onde contar outras histórias, de onde desaprender e, particularmente, de onde ler o passado e definir o futuro.
 
Nascido na Suécia, de pais argentinos exilados que descendem de imigrantes italianos que fugiram da Europa durante a Primeira Guerra Mundial, a biografia de Lagomarsino traça as próprias histórias coloniais que suas obras examinam.
 
 
Runo Lagomarsino (1977, Lund). Vive e trabalha entre Malmö e São Paulo.
 
Seus trabalhos foram incluídos em diversas exposições institucionais como: A Universal History of Infamy, LACMA, Los Angeles (2017); La Terra Inquieta, Fondazione Trussardi, Milão (2017); Little lower layer, Museum Of Contemporary Art Chicago, Chicago (2017); Really Useful Knowledge, Museo Reina Sofia, Madri (2015); Under the same sun, Guggenheim Museum, Nova York (2014). Participou das bienais: Prospect.4, New Orleans (2017); 56th Biennale di Venezia, Veneza (2015); Gothenburg International Biennial, Gothenburg (2015); 12o Bienal de Cuenca, Cuenca (2014); 30a Bienal de São Paulo, São Paulo (2012); 12th Istanbul Biennial, Istanbul (2011).
 
Suas exposições individuais incluem: We have been called many names, Nils Stærk, Copenhagen (2017); West is everywhere you look, Francesca Minini, Milão (2016);  They Watched Us For a Very Long Time, La Criée Centre for Contemporary Art, Rennes (2015); Against My Ruins, Nils Stærk, Copenhagen (2014); We have everything, but that's all we have, Mendes Wood DM, São Paulo, (2013); This Thing Called The State, Oslo Kunstförening, Oslo (2013); Even Heroes Grow Old, Index, The Swedish Contemporary Art Foundation, Estocolmo (2012).

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