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19/03 - 16/04 2022
Na introdução de A Dívida Impagável, Denise Ferreira da Silva aproxima dois acontecimentos recentes da política contemporânea para refletir, de forma crítica, sobre como a noção de diferença humana ainda ecoa em nosso presente. Para a pensadora, a diferença – em suas múltiplas facetas, marcada por territorialidade, raça, gênero ou religião – ainda é utilizada como uma forma de organizar diversos âmbitos de nossas vidas e é o denominador comum por trás desses dois eventos aparentemente tão díspares.
O primeiro deles é a chamada “crise dos refugiados” e como a recepção negativa de boa parte das autoridades europeias serviu de combustível para o medo da população local em relação às pessoas que buscam proteção no continente-condomínio fechado. A ideia de diferença cultural/ identidade étnica criou a noção de Outro na Europa, fazendo com que as pessoas que fugiam de situações de guerra ou instabilidade política, em busca de melhores condições de vida no continente europeu, tivessem seus direitos de proteção questionados.
O segundo evento é o golpe parlamentar no Brasil de 2016, que resultou no impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e na ascensão da extrema direita ao poder no país, quebrando acordos e interrompendo um fluxo de avanços que, mesmo limitados, possibilitaram que o Outro no Brasil, ou seja, negros, indígenas, mulheres e pessoas LGTQIA+, pudesse romper o ciclo histórico de exploração e imaginar uma vida com menos ameaças.
O conceito de diferença é nítido quando pensamos, em particular, nos desenhos territoriais arbitrários que forjam nações, regulando acesso a elas e estipulando como e onde certas populações podem circular ou viver. Em termos éticos, essa ferramenta da diferença define quais entre nós são mais ou menos humanos e os limites de solidariedade exclusivos aos nossos semelhantes. Se é evidente que naturalizamos o fato de habitarmos um mundo que foi definido em termos de países e continentes ou, como aponta Ferreira da Silva, um “todo composto de partes formalmente independentes”, que carregam elementos geográficos e históricos separados, naturalizamos também os efeitos que essa ficção produz em relação às diferentes populações que ocupam esses vastos territórios.
A diferença humana é uma ferramenta colonial produzida pela separabilidade que, segundo Ferreira da Silva, é um dos pilares do pensamento moderno, que molda o mundo tal como o conhecemos. É a separabilidade que estabelece que o nosso conhecimento das coisas apenas se dá por meio da interpretação de espaço, tempo e outras categorias do entendimento, tais como quantidade e qualidade.
Ferreira da Silva nos convoca a pensar “diferença sem separabilidade”, ou seja, a pensar no mundo não como um lugar marcado por separações e exclusões, operadas por questões históricas, geográficas ou circunstancias, mas como um “mundo emaranhado”, um lugar onde possamos tecer novas relações com a matéria, a forma, o tempo e o espaço, e onde cada existência se realize e se atualize no encontro com outras, gerando uma forma de pensar capaz de resgatar novos envolvimentos e acordos entre as partes.
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Ocupando o andar térreo da galeria, Acordos Possíveis é uma colaboração entre HOA e Mendes Wood DM. A mostra coletiva apresenta o trabalho de oito jovens artistas representados pela HOA, que trabalharam e desenvolveram suas práticas durante um período de intensa transformação sócio-política. Cada um à sua maneira, os artistas estão interessados em propor experimentações que nos ajudem a desenvolver um desaprendizado profundo das categorias coloniais que ainda nos assombram.
A exposição apresenta a produção dessa geração e as respostas que foram articuladas para lidar com suas urgências diárias. A abordagem de recursos naturais é recorrente entre os artistas presentes na mostra. Além disso, o uso de elementos abstratos na construção de suas obras produz ambiguidades entre imagem e matéria, numa recusa em reencenar os limites estabelecidos pela política de visibilidade contemporânea.
As pinturas texturizadas de Laís Amaral funcionam, metaforicamente, como mecanismos de rega para solos secos, em particular aqueles solos que sofreram longos processos de extração. Em sua recente série Gesto-caminho (2022), ela dá seguimento à sua pesquisa cuja grande influência são os desafios enfrentados pelas comunidades humanas face à atual catástrofe climática, transformando seu ato de pintar em uma ferramenta que transmuta sua energia vital para a tela. Em Samba in Paris (2022), parte da mesma série, Amaral empresta o título de uma música do rapper Baco Exu do Blues e, pela primeira vez, reflete sobre aspectos da sua vida pessoal, tais como amor e intimidade.
A água também é o elemento de referência de Mariana Rocha, cujas pinturas retratam paisagens subaquáticas, bem com o mar dentro do corpo humano.
Na série Quando a cor chega no Azul (2022), Juliana dos Santos apresenta a sua pesquisa com a planta Clitorea ternatea. O azul das suas pétalas é usado como base para diferentes tons de aquarela. A artista convida o tempo para atuar como parceiro, enfrentando a efemeridade de seus materiais e os diferentes ritmos que regulam os processos de oxidação em seus experimentos pictóricos.
A prática de Igi Lola Ayedun se baseia em sua pesquisa sobre as texturas, a cor azul, o poder dos minerais e as rotas globais do índigo. Vertigem (2022) reúne o resultado da acumulação de ações e de diferentes materiais, tais como óleo de argan e lápis-lazúli.
Em Família Iji (2022), parte da série Quando tudo terra era, a terra atua não só como matéria, mas como metáfora. As expansivas telas de Kelton Campos Fausto combinam religiões afro-brasileiras e memórias familiares. O trabalho é acompanhado de um enigmático conjunto de rostos que, juntos, compõem a afro-mitologia pessoal do artista.
No conjunto de esculturas Estruturas para campos densos, Iagor Peres cobre esculturas feitas de metal com uma mistura de componentes sintéticos e orgânicos. Produzido pelo próprio artista, o chamado pelematerial insinua o aspecto da pele humana. Seu formato muda conforme a condição climática, concretizando a possibilidade de invenção de diferentes corporeidades e expandido as noções de subjetividade.
As esculturas digitais de Gabriel Massan, partes da série Há um Tempo entre os Templos, foram instaladas na sala que, com vista para a igreja, sugere um altar que conecta o virtual e o real.
O divino também está presente na prática de Bertô. Influenciada pelas narrativas cristãs e pela forma como as noções de negritude forjam configurações espaciais, suas pinturas funcionam como um ponto de interseção visual entre filmes e HQs.
Em termos conceituais, a presente exposição busca ser um espaço livre para que possamos imaginar outras relações possíveis com o mundo. Para que tal tarefa se realize, é necessário um exercício de como fazer. Como podemos criar novos envolvimentos entre matéria e forma? A solução (temporária) depende de uma série de acordos e colaborações, que nos permitam pensar a “diferença sem separabilidade”.