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16/10 - 20/11 2021
Uma história de fantasmas vivendo entre mármores e florestas
Esta é uma história de fantasmas, mas também de criaturas animais, formações orgânicas e substâncias naturais: uma pareidolia às avessas que desafia a acuidade visual; uma espécie de fábula abstrata, com ares de ficção científica, cuja trama narrativa vai sendo tecida meio à arte e à natureza. Também é possível entender como um convite a visitar um gabinete de curiosidades deslocado no tempo, ou talvez como uma viagem no tempo em busca da força elementar, aquela entidade oculta a operar sua própria mágica que chamamos realidade — além do horizonte visível e abaixo da superfície de reconhecimento —, movendo-se para frente e para trás na história, antes e depois da existência humana.
Aqui, a natureza é recriada em processos mentais derivados de suas próprias formas e abstrações, que em tempos imemoriais forjaram um mundo feito de coisas vivas e inanimadas, bióticas e abióticas, movendo-se conjuntamente de forma a engendrar uma espécie de design universal. E, ainda assim, uma infinidade de perguntas nunca deixam de emergir: o que é natural, imaginado, emulado ou simplesmente artificial? Quais são as fronteiras entre esses agentes interligados que coexistem para produzir a realidade?
Neste casarão do início do século XX, em Sablon, Daniel Steegmann Mangrané exibe algumas de suas invenções, descobertas e intervenções; estruturas que ele vem idealizando enquanto artista que se aventura em digressões a mundos interiores e exteriores, bem como em viagens de campo através de florestas tropicais e selvas urbanas para, por fim, alcançando as matas da imaginação humana. Diferentes noções de escala e organização — seja de maneira espontânea, seja proposital — orientam a busca de Mangrané por padrões onipresentes, o sinal de uma morfogênese que, repetidas vezes, congela as camadas de tempo e de vida em uma miríade de corpos esculturais. E, conforme os visitantes passeiam pela casa, seus sentidos torcidos são desvendados em meio a obras que acabam por concentrar uma acumulação desigual de tempos,* promovendo o encontro com espécies diversas, com a ancestralidade de eras geológicas, com a artificialidade da inteligência humana e seus engenhosos derivativos — ou, simplesmente, com o espectro da linguagem como ferramenta tecnológica. Esse padrão de tempo em longue durée, nas palavras de Fernand Braudel, traduz-se em um palimpsesto de memórias inorgânicas, vocabulários orgânicos e impulsos demiúrgicos.
Mutatis mutandis, onde procuramos matéria natural, acabamos encontrando a própria linguagem; e, para muito além das coisas nomeáveis, esse microcosmo se desdobra em uma economia mutável de materiais, engendrando novos tipos de amostragem e coleta de dados. Logo, padrões de comportamento derivados tanto do humano quanto da natureza sinalizam um desejo colossal por unidade em um caminho de descontinuidade história, um embate permanente entre natureza e humanidade.
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A natureza ainda não existe, diz Theodor W. Adorno. Talvez aquilo que entendemos por natureza seja o resultado da nossa própria construção como espécie. A engenhosidade humana, em face ao poder não humano da vida, tentando dominá-lo ao criar uma segunda natureza, na qual convenções e normas funcionam como rotas de escape para a esfera de controle epistemológico.
Na prática de Mangrané, em vez de ser uma mera projeção intelectual, a natureza surge como uma ecologia do conhecimento, dotada de uma agência indômita e incansável: um ente vivo com o qual interagimos, uma dimensão própria a amalgamar diferentes formas de vida, incluindo a humana, bem como expandidas camadas de tempo. Ao “reescrever” desenhos orgânicos nos mais variados suportes — como se a natureza fosse deslizar lateralmente rumo a uma nova ontologia, segundo a vontade do artista — Mangrané traz novos significados a tropos visuais e aos propósitos misteriosos do mundo natural. A caligrafia de galhos é, assim, traduzida em arabescos quase fractais de formatos redundantes, cujos ritmo e repetição implicam uma espécie de modo horizontal de organização, modo este que permite a linguagem prosperar exponencialmente a ponto de ser reabsorvida pela natureza e tornar-se algo distinto, uma espécie de inteligência híbrida.
Sendo a transformação o segredo da natureza — a única e a mesma de maneiras diversas, como em um processo metonímico —, o diminutivo se torna um gigante e, em contrapartida, o universo é integrado nos menores dos fractais, bem como em todo e qualquer padrão geométrico existente, tais quais simetrias, espirais, meandros, ondas, tramas, cristais, espumas e nebulosas. Nesse processo dinâmico de reinvenção, uma coisa adquire o formato de outra em uma virtual dança camaleônica entre espécies. Assim, o desaparecimento converte-se numa estratégia de sobrevivência: o bicho-pau se disfarça de galho na pele de um inseto, preso em sua própria virtualidade — o holograma como uma esfera inalcançável de proteção, concebido para impossibilitar a destruição da vida.
De maneira similar, embora distante do domínio da primeira natureza, Stela do Patrocínio, poeta e paciente psiquiátrica durante toda uma vida, também opera sua própria estratégia de sobrevivência por meio do desaparecimento, mas desta vez sob o feitiço da linguagem:
eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
eu era ar, espaço, vazio, tempo
e gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó
eu não tinha formação
não tinha formatura
não tinha onde fazer cabeça,
fazer braço, fazer corpo
fazer orelha, fazer nariz
fazer céu da boca, fazer falatório
fazer músculo, fazer dente
eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
fazer cabeça, pensar em alguma coisa
ser útil, inteligente, ser raciocínio
não tinha onde tirar nada disso
eu era espaço vazio puro
Uma vez mais, o espaço etéreo do pensamento a produzir a abstração, dissolvendo a substância orgânica em poesia. Uma cascata de metáforas torrenciais e de metonímias horizontais permite que a poeta exista como uma entidade autônoma, livre das restrições da vida material — esse doloroso estado de ser que expõe a natureza à dor e até mesmo à morte. Sujeito e objeto, portanto, fundem se em uma mesma unidade, aniquilando por completo a noção de espaço e tempo, como se a memória não estivesse mais aprisionada sob a redoma de uma existência singular.
Esse lapso biográfico da vida — uma narrativa histórica que responde por um corpo singular — desaparece por uma fresta que difrata seus conteúdos de forma a se tornar algo novo, não mais um ser integral, mas uma profusão de formas possíveis. Como em Nu descendant un escalier, de Marcel Duchamp, um efeito de vitral transfigura o corpo em movimento difratando suas partes, e, ao fazê-lo, contornos singulares se tornam universais em um constante processo de regeneração. Por um buraco na parede, os mundos interior e exterior interagem segundo uma economia de mútua contaminação.
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De acordo com Gore Vidal, a memória funciona como um palimpsesto, sendo constantemente reescrita — muito diferente de um arquivo de computador que, salvo quando modificado, permanece intacto e, portanto, o mesmo. A memória humana está sujeita à transformação; toda vez que vem à superfície, assume formas distintas, tornando-se uma nova narrativa, contaminada pela luz do dia. De modo bastante similar, em termos geológicos, a memória de uma rocha acumula camadas milenares de tempo, as quais remontam a uma era livre de narrativas humanas, ou de linguagem. Não obstante, sempre que um cientista escava a terra, o passado vem à tona, expondo o tempo ao universo do conhecimento e, em larga medida, à influência do tempo presente.
Em sua dança artística, Steegmann Mangrané põe em marcha uma operação análoga, e ao situar a pedra de mármore num cenário que contrapõe tempo versus história versus vida, acaba revelando que essas formações geológicas são diferentes de outras pedras na medida em que fundem elementos orgânicos em um constante processo metamórfico. Há mais de duzentos milhões de anos, esse mármore supostamente sem vida existia na forma de animais e florestas e, muito possivelmente, poderá vir a engendrar novas formas de vida em um futuro distante. Em lugar de pura sedimentação, a metamorfose aqui se dá no curso de uma permanente história de evolução e constante transformação.
Sem ignorar a sinergia ancestral entre esse estratificado corpo mineral e os organismos vivos no arco de tempo estendido, o artista acrescenta ainda uma camada de memória a essa pedra em aparente silêncio sepulcral: uma camada impressa pela ação humana nesse mármore que jaz em meio à exposição, cuja superfície ganha novas cartografias e arranjos — um território desconcertado, afetado tanto pelo poder de impetrados agentes transformadores quanto pela duração inefável do próprio tempo. Podemos chamar isso de Antropoceno ou, talvez, o lapso de tempo da ação especulativa, que empresta voz à natureza por meio da artificialidade da própria arte.
Bernardo José de Souza
*De acordo com o geógrafo Milton Santos, o espaço é o resultado da acumulação desigual de tempos, camadas de agentes geológicos, naturais, humanos e tecnológicos que, quando combinados, engendram a história e a sua relação intrínseca com as forças políticas, sociais e econômicas. Ver SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: Edusp, 2012.