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15/03 – 15/04 2019


ABSTRAÇÃO TENSIONAL

Em 1983, a rede pública de televisão norte-americana PBS transmitia o primeiro episódio de The Joy of Painting [A alegria de pintar], um programa de televisão educativo, de meia hora de duração, apresentado pelo pintor e celebridade Bob Ross. Nesse programa, com 403 episódios que foram transmitidos semanalmente de 1983 a 1994, Ross dava lições breves e incisivas sobre a correta execução formal da pintura. Embora com uma forte predisposição para o figurativismo, o programa explorava também um variado espectro de técnicas de pintura, fornecendo referências históricas e guiando o movimento das mãos dos espectadores através da tela.

Ao longo dos episódios, a pintura era tipificada como uma valiosa forma de expressão, um ato de habilidade extremamente categórico que exige dedicação integral – e estudo. O formato havia sido claramente concebido para um público amplo, mas, mesmo assim, conseguiu comunicar o extraordinário trabalho que constitui a prática da pintura e a excelência técnica que ela requer.

Curiosamente, a professora e crítica de arte Isabelle Graw apresenta uma afirmação semelhante em seu livro Painting Beyond Itself [A pintura além dela mesma]. De acordo com Graw, a vivacidade [liveness] da pintura é assustadoramente semelhante ao exercício de estudo oferecido pelas aulas instrutivas e hipnóticas de The Joy of Painting. A vivacidade que Graw discerne como um código crucial da pintura enquanto forma de expressão tem pouco a ver com suas características estéticas. Pelo contrário, ela resulta do fato de que a vida e o tempo de trabalho de um artista vivo foram empreendidos no processo de pintar. Esse “elo estreito entre produto e pessoa” – a conexão física da pintura não com seu objeto, mas com seu autor – contribuiria para a predominância hierárquica da pintura sobre todas as outras manifestações formais das belas artes. De acordo com o pensamento de Graw, a presença fantasmagórica do artista no interior da obra – um mito arquetípico e holográfico – também poderia levar a uma análise do valor simbólico de uma pintura, ou seja, um produto carregado de intencionalidade.

Ao inverter os termos dessa relação osmótica entre o autor e o produto – aquela que vê a obra de arte como uma emanação direta da agência –, é razoável supor que o artista, ou melhor, o pintor, se encontra em uma condição demiúrgica em que o trabalho intencional é transferido para a obra. Essa transmissão empática gera o mito do pintor – ou seja, o artista cuja vivacidade emerge da obra.

Esse mito, no entanto, está longe de encontrar respaldo na prática de João – ele claramente o reconhece, mas não se rende a ele. A metodologia de João deve ser observada e discutida dentro de um quadro de referências e de humor sutil. Um certo grau de atenção é direcionado às estruturas que sustentam a pintura – formato, tela crua, pincéis, moldura –, como se o gesto de selecionar, reunir e manipular os meios de sua produção pictórica fosse uma implicação teórica da própria obra. Isso não é, certamente, apenas uma possibilidade: João transforma essa pré-condição em afirmação, reivindicando uma objetividade tangível para seu próprio trabalho.

O que está em jogo é a construção de uma linguagem capaz de especular sobre os multifacetados tropos da pintura, ao mesmo tempo que aborda também o objeto-pintura com uma espécie de distanciamento intelectual – uma análise espirituosa sobre o fato de a pintura estar aqui, viva, e de que nós, de alguma forma, temos de lidar com ela. Apropriar-se dos arquétipos da pintura e manipulá-los de modo a transformá-los numa linguagem estética pessoal é claramente um processo que João quer deixar visível em seu trabalho. O desvio está, de fato, no cerne de seu pintar, e se torna o veículo para formular questões à forma de expressão áurea que é a pintura, enquanto também constrói um vocabulário visual que o artista articula em toda a sua obra.

Distanciando-se do clichê do pintor isolado em seu ateliê – cuja sensibilidade se vincula à obra por um elo místico –, que se entrega ao idílio da pintura, João questiona seu papel de produtor artístico com uma postura quase científica ou sociológica – assim como o faz a sua obra.

Por ocasião da exposição de Francesco João na Mendes Wood DM de Bruxelas, sua primeira mostra individual na Bélgica, o artista desenvolveu uma nova série de pinturas que articulam suas inquietações com as implicações sociais, estéticas e históricas da pintura enquanto forma de expressão. Embora possam ser consideradas uma narrativa épica, João se vale desse paradoxo – o de produzir pinturas para falar sobre pintura – para contextualizar sua obra em meio a suas referências.

Nessas obras, João se apropriou de imagens encontradas em uma busca no Google, que foram reproduzidas em sua tela de pintura com uma atitude hábil e precisa. As imagens ficam quase visíveis, quase reconhecíveis para o espectador, mas se escondem atrás de muitas camadas de guache. Essa ação pictórica lembra a técnica da serigrafia, em que a matriz permite a reprodução de cópias ilimitadas graças à estratificação das camadas da imagem. Ironicamente, João está, aqui, fazendo uma declaração – está trabalhando em uma matriz “1-de-1” para criar uma cópia “1-de-1”, uma matriz para toda a noção de pintura, pode-se argumentar.

Esse processo é teoricamente fundamentado, e polêmico – imagine o artista em ação, preenchendo, com um pincel de precisão, os vazios da imagem-matriz projetada na tela. Há muito tempo para a meditação e para considerar o trabalho como um todo. Além disso, o enigma formal dessa técnica localiza-se na ilusão da reprodutibilidade do objeto-pintura final, um questionamento pelo qual passaram muitas vezes essas pinturas. A verdadeira essência, o detalhe da unicidade, se encontra, de fato, no interior dessa estrutura complexa de camadas – exatamente onde uma gota de tinta forçou o código da imagem. A imperfeição se torna a chave para questionar a obra.

Há de fato um enorme esforço característico da pintura na obra de João, mas ele não lhe dá muita atenção; não há aqui mistificação da pintura enquanto forma de expressão – acima de tudo, uma investigação substancial sobre o caráter de objeto da pintura é levada a cabo por meio de um senso de ironia. Essa capacidade irônica é transmitida principalmente através da subversão da percepção, através do rompimento de hierarquias arquetípicas e classificações na pintura – entre figurativismo e abstracionismo, por exemplo. Expressa muito bem essa visão a escolha dos temas das obras de João: paisagens.

Um dos principais cânones da história mundial das artes plásticas, a pintura de paisagens sobreviveu dominações imperialistas, mudanças climáticas, transformações sociopolíticas, vanguardas artísticas, Guerras Mundiais e tantas outras coisas que até me sinto um pouco envergonhado para discuti-las aqui, por conta do meu parco conhecimento sobre esse assunto tão essencial e atual. O que sei, e tenho certeza de que o artista também o sabe, é que a pintura de paisagem sempre foi um veículo para sequestrar a narrativa lúdica de uma representação realista de um dado ambiente circundante, e para carregar a imagem idílica com referências e mensagens subjacentes e implícitas.

Ocorre exatamente o mesmo processo nas pinturas de João, em que os tropos da pintura de paisagem são desviados para uma restituição muito mais obscura, tensa e formal. Pedaços incomuns de paisagens, marinhas neste caso, emergem de camadas de cores complementares na tela delimitada pelo enquadramento, como se estivessem suspensas no tempo e no espaço. É quase impossível afirmar se estamos na praia ou na Lua. Na verdade, o espaço exterior se torna outra paisagem a ser manipulada em outra série de obras que integra esta exposição, principalmente pelos olhos de Curiosity – um astromóvel controlado pelo Programa de Exploração de Marte, da NASA.

Todos esses elementos – a investigação da pintura e sua conotação áurea, a rejeição do mito do pintor, a ruptura das fronteiras entre abstracionismo e figurativismo, a apropriação de arquétipos – situam a prática de Francesco João em um campo de abstração tensional, em que as imagens arranham a superfície, mas não conseguem se afirmar como tais.

– Federico Sargentone

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